Aspectos fundamentais da cultura guaraní: Prefácio (Schaden 1974)
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PREFÁCIO


Este trabalho é um estudo antropológico da cultura e da aculturação dos índios Guaraní hoje existentes no Brasil. Cumpre acentuar, de inicio, que não há todavia a pretensão de retratar de modo pormenorizado a cultura tribal em seus múltiplos aspectos materiais e não-materiais. Para tanto, seria preciso não somente explorar, com atitude crítica, a imensa e riquíssima bibliografia sobre os antigos e modernos Guaraní, acumulada desde os tempos da Conquista, como ainda, observando, de perto e por tempo suficiente, as variantes e modalidades da cultura desses indios em todos os subgrupos atuais da tribo (dentro e fora do território nacional), ter em mira uma elaboração monográfica dos dados acessiveis. Por necessária que se afigure contribuição dessa ordem, não é o que se tenciona fazer aqui. O objetivo destas páginas, em certo sentido mais modesto e despretensioso, em outro talvez menos, é o de captar, através da apresentação e discussão de alguns aspectos fundamentais da cultura, a maneira pela qual se desenrolam os processos aculturativos no choque entre a configuração cultural Guaraní e diversas formas de vida inerentes ou de algum modo ligadas à civilização ocidental. Pareceu-me haver nesta perspectiva, além do interesse etnográfico do material apresentado, contribuição mais propriamente antropológica, de compreensão dinâmica e funcional dos processos culturais. Os aspectos escolhidos para a análise são apresentados dentro de um enquadramento geral mais amplo, no qual, a meu ver, não se devia prescindir, entre outras coisas, de um capitulo introdutório sobre o problema da classificação dos subgrupos da tribo e de outro sobre os caracteres físicos dos Guarani.

Não obstante as luzes que teria proporcionado, a comparação com outras culturas, principalmente de tribos da família Tupí-Guaraní, foi igualmente posta à margem, salvo em alguns poucos casos excepcionais. É que, em vez de apresentar análise pluridimensional, completa ou exaustiva da cultura, me pareceu preferível ater-me a um campo mais restrito. Por essa razão, achei de bom alvitre apoiar-me principalmente em observações pessoais, pressupondo no leitor o co-

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nhecimento do material bibliográfico existente, pelo menos das fontes mais acessíveis. Pela natureza do trabalho, não haveria grande vantagem na transcrição, reprodução ou resumo do que se lê nos estudos de Nimuendajú e de outros autores, antigos e modernos, que escreveram sobre as muitas tribos Tupí-Guaraní. Por outro lado, as fontes não poderiam ser ignoradas, sempre que nelas se encontrassem elementos indispensáveis à compreensão do problema capital aqui focalizado: o da aculturação e concomitante destribalização dos Guaraní da atualidade em contacto com grupos e culturas estranhas.

Como não desejo apresentar aqui trabalho de erudição, mas um estudo antropológico de parte do material colhido em minhas viagens, achei necessário resistir por enquanto à tentação, que surgia a cada passo, de discutir até que ponto e em que sentido as minhas observações sobre este ou aquele problema concordavam ou não com as de outros autores. Não fosse a posição assumida, fácil teria sido completar e enriquecer uma série de passagens do texto, que, por força das circunstâncias, não podem deixar de ser fragmentárias. Renunciei ao expediente, pois se o ensaio lucraria em um sentido, talvez perdesse em outro: sacrificar-se-ia o objetivo primordial a uma tentativa de elaboração monográfica. De outro lado, a inclusão de uns tantos pormenores à primeira vista menos significativos para o entendimento dos problemas centrais do trabalho parecia justificar-se na medida em que não sobrecarregasse o texto e proporcionasse em seu conjunto o indispensável quadro etnográfico para as questãos formuladas. Autores que desejem retomar o assunto encontrarão talvez aí elementos concretos para o exame de outros aspectos dos fenômenos de conservação e mudança, de homogeneização intragrupal, de diferenciação e outros semelhantes.

Na medida do possível, a exposição se orienta no sentido de sempre permitir ao leitor o confronto dos caracteres que imprimem unidade à cultura tribal Guaraní com as manifestações particulares e a especialização dessa cultura no sistema próprio de cada um dos subgrupos ou dos vários núcleos existentes em território brasileiro.

O princípio metodológico deste ensaio se caracteriza em resumo no sentido duma descrição integrativa com vistas ao conhecimento do ethos tribal, apoiado por uma visão funcionalista dos processos aculturativos. Para não ser inteiramente arbitrária, a escolha dos aspectos discutidos não poderia ser feita senão após um

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estudo global da cultura. A rigor, porém, uma seleção diferente deveria, em última análise, revelar as mesmas linhas do dinamismo cultural Guaraní. Isto quer dizer que o conceito de aspectos fundamentais aqui empregado não se refere necessariamente a elementos ou valores nucleares, nem a esferas de minuciosa elaboração cultural, mas a padrões e fenômenos cujo exame em seu conjunto parece evidenciar talvez melhor do que outros o caráter genuíno e próprio do sistema em apreço. Mas é preciso confessar também que na escolha contribuiu poderoso fator circunstancial: a maior ou menor consistência do material colhido em campo.

Na elaboração, o esforço dispendido visa, de certo modo, a conciliar a atitude funcionalista com a caracterização tipológica ou, pelo menos, idiográfica da configuração cultural. Para não se alongar desnecessariamente o texto, não se procura tornar explícita umas tantas conclusões de ordem geral que neste sentido o antropólogo depreende com facilidade da própria apresentação dos elementos observados. É notório que a maneira pela qual se expõem os dados — quando não se trata de simples reportagem ou "empirismo antropológico" — não somente pressupõe uma posição teórica, mas é teoria. E tal se tem em vista quando se pretende que num trabalho de ciência os fatos "falem por si". Na medida em que se consiga apresentá-los de modo que o conjunto venha a ter um sentido dentro de determinadas premissas cintíficas e em que este sentido se evidencie pela própria descrição objetiva, parece possível reduzir a um mínimo a discussão de teorias, a não ser que esta seja a intenção do trabalho.

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Baseia-se este estudo em pesquisas realizadas entre índios de idioma Guaraní de diferentes partes do Brasil. Iniciados em junho de 1946, os trabalhos se prolongaram, com numerosas e longas interrupções, até às vésperas da publicação. Fiz diversas visitas a três aldeias indígenas do litoral paulista: Rio Branco, Bananal e ltariri; além disso, tive repetidos contactos com índios dessas aldeias nas cidades de São Vicente e São Paulo. Não estive na atual aldeia do Rio Comprido (Serra dos Itatins), mas conheci os seus moradores, quando ainda viviam no Itariri. Trabalhei também no Posto Indígena Curt Nimuendajú, antigo Araribá, nas proximidades da cidade de Bauru, e colhi algum material entre os Guaraní do Palmeirinha (baixo Iguaçu, no Oeste paranaense), como também entre os da Laranjinha na região
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de Xapecó, no "far-west" de Santa Catarina. Convivi com índios da tribo, especialmente dp subgrupo Kayová, em diversos núcleos do Sul mato-grossense: Dourados, Panambi, Amambai, Taquapiri e Jacareí, este último de famílias do subgrupo Randéva. Não me foi possível conhecer algumas outras aldeias igualmente importantes, como, por exemplo, a de Guarita, no Rio Grande do Sul. — Em princípios do corrente ano, visitei, acompanhado pelo sr. Léon Cadogan, os Mbüá-Guaraní de Paso Yovai (Yroỹsã), no Leste paraguaio.

A vantagem decorrente do número bastante grande de núcleos visitados e da freqüência dos contactos em múltiplas situações é contrabalançada,
infelizmente, pela pouca duração da minha estada nos vários aldeamentos. O mais longo período de trabalho ininterrupto em uma determinada povoação foi a permanência de quatro semanas entre os índios de Dourados, em julho de 1950.

As viagens se tornaram possíveis graças a auxílios concedidos pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, pela Reitoria da mesma Universidade e pelo Serviço de Proteção aos Indios. A todos, os meus sinceros agradecimentos.

Quero agradecer também, e muito cordialmente, aos meus numerosos amigos índios, que, às vezes com grande sacrifício pessoal, me auxiliaram na realização das pesquisas. Sem a boa vontade que sempre demonstraram, as páginas deste livro não teriam sido escritas. Impossível mencioná-los a todos aqui. Lembro apenas alguns nomes: Marçal de Souza, Paí José Bourbon Catalán Avelar, Paí Chiquinho, Paí Vitaliano, ñanderú Bastião, Capitão Maneco (ou Poýdjú, que é txerúangá, meu pai adotivo) e Capitão Francisco. Devo muitíssimo a todos eles.

E, ao concluir, os meus melhores agradecimentos ao exmo. sr. Prof. Dr. Eurípedes Simões de Paula, DD. Diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, que me ajudou a vencer todas as dificuldades; sempre pronto a socorrer, fez o que estava a seu alcance para que este trabalho fosse publicado da melhor forma possível.

São Paulo, 8 de julho de 1954

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