- Schaden, Egon. 1967. Notas sôbre a vida e a obra de Curt Nimuendajú. Revista de Antropologia, volumes 15 e 16 (1967-68), p. 77-89. [Disponível também em PDF]
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NOTAS SÔBRE A VIDA E A OBRA DE CURT NIMUENDAJÚ
Egon Schaden
(Universidade de São Paulo)
Em 10 de dezembro de 1945, faleceu numa aldeia dos Tukúna, perto de Santa Rita no alto Solimões, o eminente etnólogo Curt Nimuendajú, que foi também grande amigo e protetor dos aborígines brasileiros. Empregou quarenta anos de sua vida no estudo dos idiomas e das culturas indígenas e realizou numerosas expedições até os mais longínquos recantos do Brasil.
Não houve, nem por certo jamais haverá melhor conhecedor das tribos índias do país. Difìcilmente se encontrará outro cientista em condições de dedicar quatro decênios inteiramente a viagens de exploração etnológica e ao estudo intensivo da literatura especializada. O material recolhido pelo sábio provém de dezenas de tribos, com as quais conviveu. Um notável acervo de contribuições científicas — de etnologia, de lingüística e de arqueologia —, publicadas em revistas americanas e européias, e uma série de monografias etnográficas se enumeram entre os melhores estudos sôbre o indígena brasileiro. O espólio de Nimuendajú, arquivado no Museu Nacional do Rio de Janeiro, inclui grande cópia de material inédito, principalmente relativo a idiomas indígenas. E, embora se queixasse de a natureza não o ter dotado de talento para o estudo de línguas, falava correntemente vários dialetos ameríndios, registrou muitos e extensos textos ditados pelos próprios índios no idioma nativo e contribuiu para a elucidação dos problemas lingüísticos do Brasil aborígine.
Chamava-se originàriamente Curt Unkel (ou Unckel). Nascido em 17 de abril de 1883, na cidade alemã de Jena, cedo se tornou órfão. O pai, que era comerciante, faleceu por ocasião de uma viagem a Moscou no ano do nascimento do filho, ou pouco mais tarde. Logo após, deu-se a morte da mãe, ficando o pequeno, por um ano, sob os cuidados da avó e, depois, de uma tia. Menino de escola, Curt organizou com alguns companheiros um "bando de índios", que brincava nos bosques de Iena. Daí lhe nasceu por certo o desejo de um dia viver com os indígenas. Fêz o curso secundário e foi trabalhar na fábrica Zeiss. Passava então muitas horas estudando mapas e lendo tudo o que na biblioteca da fábrica havia sôbre os índios da America do Norte e do Sul. Ao mesmo tempo fazia exercícios de tiro ao
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alvo no bosque de Iena, a fim de preparar-se para a vida nas selvas. O seu grande sonho era emigrar para o Brasil; realizou-o afinal com o auxílio de sua meia-irmã, que se tornara professôra e que reuniu o dinheiro necessário ao pagamento da passagem1.
Quis o acaso que em 1905, apenas dois anos após a sua chegada ao Brasil, Curt Unkel entrasse em contacto com os Guaraní do interior do Estado de São Paulo, tribo sôbre a qual existia abundante literatura, remontando até o século XVI, mas cuja religião era apesar disso muito mal conhecida. O jovem pesquisador, bastante bem familiarizado com os textos etnológicos, não tardou a verificar que estaria em condições de apresentar ao mundo científico muitos conhecimentos novos e importantes sôbre os Guaraní. Ademais, tratava-se de silvícolas que viviam em contacto estreito com os caboclos da região, que, além de desprezá-los, às vezes também os maltratavam. Tudo isso deu ensejo a que se manifestassem logo nos primeiros escritos de Nimuendajú dois traços marcantes de sua personalidade, o do pesquisador consciencioso e o do intransigente defensor do indígena ludibriado. Esses traços o distinguiriam pela vida afora. Sempre se preocupou com a solução de novos problemas etnológicos e em tôda parte tomou a defesa intransigente do silvícola contra injustiças de tôda espécie. Ainda três dias antes de morrer redigiria veemente protesto contra a atitude brutal e covarde dos brancos em face dos Parakanã do Rio Tocantins.
O nome Nimuendajú, sob o qual o jovem indianista logo se tornou conhecido entre os etnólogos, lhe foi impôsto pelos Guaraní. Em pouco tempo, o forasteiro aprendera a língua e captara a confiança dêsses índios. Em 1906 o adotaram com tôda a formalidade no seio da tribo, batizando-o segundo os ritos de sua religião. E pelo menos desde o ano de 1910 encontramos o nome Nimuendajú na assinatura do pesquisador, ora juntamente com Unkel, ora em lugar do nome germânico, substituição esta que se tornou oficial em 1922, quando o govêrno brasileiro concedeu naturalização ao então funcionário do Serviço de Proteção aos Índios.
Não é muito fácil dizer o que significa a palavra Nimuendajú. Nimuendá quer dizer "arranjar para si um lugar". O final jú ou djú é um verbo defetivo que indica o ser2. Unkel se estabelecera na aldeia Guarani do Batalha, na proximidade de Bauru, e lá construíra um rancho, donde por certo o nome que lhe deram. O paraguaio Juan Francisco Recalde, que era exímio conhecedor do idioma guaraní, interpreta nimuendá como "aquêle que soube abrir o seu próprio caminho neste mundo e conquistou o seu lugar"3. Esta tradução um tanto livre, é inteiramente satisfatória do ponto de vista simbólico. Nada mais expressivo para bem caracterizar a vida de um homem que, sem formação universitária de espécie alguma, se tornou expoente máximo de uma ciência altamente especializada, como o é a etnologia brasileira. Isto como fruto de incomparável fôrça de vontade, da firme decisão de pôr a existência a serviço de uma só idéia. Em minha bi-
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blioteca guardo com carinho um velho e mutilado compêndio de etnografia geral de meados do século passado, ''Die Völker des Erdballs", de Heinrich Berghaus4. É o exemplar que pertenceu a Nimuendajú. Serviu-lhe para a iniciação autodidática em etnografia. Em letra caligráfica estão aí numerosas anotações marginais que testemunham a seriedade com que o jovem de então tomou contacto com uma ciência na qual, por seu próprio esfôrço, haveria de tornar-se mestre de projeção.
O parentesco espiritual que o liga a todos os indianistas assume para mim um sentido peculiar por têrmos sido ambos — Nimuendajú e eu — recebidos não sòmente, com todos os ritos, como irmãos de tribo no mesmo bando de Apapokúva ou Ñandéva-Guarani, mas até na mesma família. O pai adotivo de Nimuendajú, Avakaúdjú, era irmão de Poydjú, a quem eu devo o tratamento de txerúangá, que corresponde ao da pessoa que toma o lugar do pai na cerimônia batismal do nimongaraí5. Uma vez que irmão e sobrinho são sinônimos em guaraní, Nimuendajú é txerykey, ou seja, meu irmão mais velho. Como tal o tenho considerado também no campo dos estudos etnológicos e, em particular, na investigação da cultura guaraní contemporânea. E à medida que trato de aprofundar-me no conhecimento dessa cultura, vai crescendo a minha admiração por quem a estudou antes de mim, txerykey Nimuendajú.
Na noite de 20 a 21 de abril de 1947, na aldeia de Araribá — atual P.I. Curt Nimuendajú — fui submetido ao batismo guaraní, recebendo o nome Avanimondyiá. Na mesma aldeia, 41 anos antes, Curt Unkel recebera o nome Nimuendajú, passando pela mesma cerimônia, que o abnegado cientista caracterizou com acêrto como "algo complicada e incômoda". Compreende ela uma série de ritos e danças que se estendem por tôda uma noite, desde o pôr do sol até o seu retôrno na barra do horizonte. Complicada e incômoda, sim, mas também impressionante cerimônia, que constituiu para mim, como deve ter constítuido para Nimuendajú, uma vivência inesquecível.
As suas publicações sôbre o indígena abrangem cêrca de sessenta títulos, entre monografias, relatórios, artigos e vocabulários. Alguns de seus trabalhos mais importantes saíram do prelo após a morte do cientista. A série se inicia, ao que parece, com um artigo "Nimongaraí", inserto em 1910 no jornal ''Deutsche Zeitung" de São Paulo e no qual descreve a sua adoção cerimonial na tribo guaraní6. Em português saíram apenas alguns vocabulários, relatórios e artigos menores, além de um estudo monográfico sôbre os Apinayé7. Cogita-se de uma edição completa das obras em língua portuguêsa, para torná-las mais acessíveis aos estudiosos brasileiros. É tarefa urgente. Quanto ao grande mapa etnográfico do Brasil, obra-prima que não tem igual entre os congêneres do mundo e que só poderia ter como autor a quem, como Nimuendajú, dedicou tôda uma existência ao estudo das populações indígenas, foi êle confiado há mais de dez anos às oficinas da Im-
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prensa Nacional no Rio de Janeiro. Continuamos aguardando a sua publicação. De Karl von den Steinen afirma-se — com justiça, aliás — ter êle inaugurado uma nova época da etnologia brasileira. Em primeiro lugar, por haver dado início à serie de expedições especialmente destinadas à investigação dos nossos problemas etnológicos; em segundo, por ter sido o primeiro a estudar de modo sistemático as culturas indígenas do Brasil sob o prisma de uma teoria científica. Mas também Curt Nimuendajú imprimiu novos rumos à pesquisa etnológica em nosso país.
O primeiro trabalho de envergadura escrito por Nimuendajú saiu em 1914 na "Zeitschrift für Ethnologie", de Berlim8. Trata da mitologia e da religião de um bando guaraní, os Apapokúva, e é ainda hoje indispensável a quantos queiram ter uma compreensão satisfatória da cultura dessa tribo. Nêle se mostra, de forma extraordinàriamente viva, o papel das idéias religiosas e, em especial, dos mitos da criação e da destruição da terra no destino dos índios Guaraní a partir dos primeiros decênios do século passado. Tomados de pânico diante da destruição do mundo, que acreditavam iminente, e apegando-se à idéia de encontrarem salvação numa "Terra sem Males", situada na direção do Nascente, além do Oceano, numerosos bandos da tribo se deslocaram de seu primitivo hábitat, migrando para o litoral atlântico. Ao analisar essa história e os seus fundamentos mítico-religiosos, Nimuendajú conseguiu, sem grande aparato teórico, mas com notável capacidade de penetração, pôr a descoberto o "ethos" da cultura e as suas conseqüências para a determinação do tipo de personalidade peculiar à tribo guaraní. Firmou com êsse estudo a sua posição de destaque no rol dos grandes etnólogos.
A maior contribuição de Curt Nimuendajú para a etnologia brasílica diz respeito a várias culturas da família jê. Das monografias principais de sua lavra, duas tratam dos índios Timbíra: uma do ramo ocidental, os Apinayé9, e outra, dos diferentes grupos reunidos sob a denominação de Timbíra Orientais10. Esta última obra, que por si só bastaria para consagrar o nome de um cientista, foi publicada em 1946, após a morte do autor, pela Universidade da Califórnia. Robert H. Lowie, que a traduziu para o inglês, a apresenta aos leitores como um dos mais notáveis trabalhos científicos sôbre indígenas da América do Sul.
Era antigo o interêsse de Nimuendajú pelas tribos Jê. Logo nos primeiros anos de sua carreira tivera repetidos contactos com os Kaingáng ou Coroados do oeste paulista e do Paraná, índios tradicionalmente classificados como jê meridionais, mas hoje, segundo o esquema de Chestmír Loukotka, em geral encarados como representando família lingüística à parte. Já em 1913, começando com um bando de índios Canelas, em São Luís, Nimuendajú se põe a fazer o levantamento lingüístico e mitológico dos Jê setentrionais; em 1914 publica um vocabulário e textos míticos co-
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lhidos de um indio Kreyé (Timbíra) de Bacabal11. Nesse mesmo ano visita os Timbíra em suas aldeias do Alto Gurupi, demorando-se na região por um período de seis meses, o que lhe permite trabalhar também entre os Tembé e os Urubus, tribos tupí daquele território; dos Tembé publicou valiosa coleção de mitos12. Em 1929 prossegue no levantamento dos dialetos Timbíra13. Dêsse ano data também a sua ocupação mais intensiva com os problemas da estrutura social das tribos jê, ocupação persistente, embora interrompida por outras tarefas, que se prolongou até 1940, ano em que o cientista visita os Górotire do Xingu e os Kayapó do Arraias14.
Em mais de um sentido, os resultados dessas expedições às tribos jê, custeadas em parte pelos museus etnológicos de Hamburgo, Dresden e Leipzig e em parte pelo Instituto Carnegie e pela Universidade da Califórnia, constituíram surprêsa para os estudiosos de nossas culturas indígenas. Não é possível entrar aqui em pormenores, mas basta talvez chamar a atenção para o intricamento da estrutura e da organização sociais, de cujas características se tinha idéia apenas vaga e bastante errônea. Com ardor científico e persistência a toda prova, Nimuendajú conseguiu desvendar, se não de maneira cabal, pelo menos em grau realmente notável a complexidade do sistema. Talvez não haja tribo brasileira cujo sistema social seja hoje tão bem conhecido como o dos Timbíra Orientais.
Em suma, as monografias sôbre tribos jê representam a contribuição máxima de Nimuendajú no campo da etnologia brasílica. Não é que as monografias tribais em si constituam o objetivo último de nossas preocupações científicas. Mas são a base indispensável para uma análise profunda de qualquer problema de importância. Ciente embora de que um estudo monográfico nunca chega a ser completo, a retratar uma cultura tribal em todos os seus pormenores e em tôdas as perspectivas, o pesquisador não se cansava em ir levando avante as suas indagações, em voltar ao campo mais e mais vêzes, em conviver com os índios durante muitos meses seguidos, para, assim, penetrar o quanto possível na complexidade da existência social e no intimo das concepções religiosas. Não somente os Jê lhe mereceram êsse rigor de documentação científica. Ainda no fim da vida depois de pràticamente concluído o manuscrito sôbre os Tukúna, fruto de onze meses de árduo convívio com a tribo, volta às regiões fronteiriças com o Peru e a Colômbia para obter mais clareza sôbre umas tantas questões. Não lhe foi dado realizar o intento, pois a morte o surpreendeu logo após a sua chegada à aldeia indígena.
Autores como Cooper, Robert H. Lowie e, mais recentemente, Claude Lévi-Strauss tiveram o mérito de precisar em que sentido os trabalhos de Nimuendajú sôbre as tribos jê são revolucionários nos quadros da etnologia brasileira. Pode-se dizer, sem mêdo de errar, que a importância des-
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sas contribuições se revelará em sua plenitude somente a partir do momento em que alguém se proponha fazer — o que há decênios não se tem feito — uma nova sistematização e exposição de síntese dos problemas fundamentais do estudo científico das culturas indígenas do Brasil.
Como se pode caracterizar a personalidade e os interêsses científicos que se espelham nas produções do incansável pesquisador? Antes de mais nada, cada uma de suas páginas testemunha uma preocupação constante e nunca desmentida em confiar apenas em observações próprias, uma honestidade espontânea em confessar deficiências e lacunas, em ser o primeiro a apontar o caráter fragmentário do material colhido. Em segundo lugar, um receio quase doentio de propor ou sugerir alguma interpretação teórica possìvelmente falha; nada mais longe de seu espírito do que o desejo de impressionar com fraseado balofo ou com formulações arrojadas que acaso pudessem mascarar as deficiências do conhecimento real. E, em terceiro lugar, a atitude humilde de quem procurava aperfeiçoar cada vez mais o seu método de trabalho com auxílio dos que estivessem mais bem informados no tocante aos requisitos teóricos da etnologia moderna. Se, com isto, no decorrer dos anos, o seu estilo foi perdendo um pouco da espontâneidade das primeiras produções, por outro lado as monografias elaboradas no último decênio de sua vida satisfazem mais às exigências dos padrões acadêmicos. Ainda assim, ou por isso mesmo, não se surpreende nunca em seus textos a mais leve pretensão de estar dizendo a última palavra sôbre os assuntos versados.
Quanto à predileção por tais ou quais setores da ciência, houve certa mudança nas diferentes fases de sua carreira de etnólogo. O levantamento de vocabulários e textos fê-lo sempre, em tôdas as circunstâncias propícias. Constante foi também a sua curiosidade pela história das migrações, pela distribuição geográfica das tribos e pelos contactos interétnicos, sem com isso cair na tentação, a que poucos resistem, de ensaiar aventurosas reconstruções histórico-culturais. No setor propriamente etnológico, porém, o ponto de gravidade se deslocou dos estudos de religião e mitologia para os de estrutura social, em parte talvez pela influência que sôbre êle exerceu Robert Lowie, que muito o estimulou e auxiliou nos últimos anos.
Longe de se reduzirem a simples objetos de pesquisa científica, os índios eram para êle também sêres humanos que precisavam de ajuda. Onde quer que se lhe oferecesse oportunidade, empenhava-se em dar-lhes amparo contra os abusos a que estavam expostos. O que Rondon realizou em escala nacional, fê-lo Nimuendajú, com igual convicção e persistência, em inúmeras situações particulares. Os seus relatórios ao Serviço de Proteção aos Índios exprimem bem a sua revolta contra o tratamento injusto dado aos silvícolas. Mas, embora as medidas concretas que reclama-
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va pudessem ter minorado muito sofrimento, não parecia ter ilusões quanto ao destino que, cedo ou tarde, será o das tribos brasileiras em conjunto. Conhecia de perto as conseqüências catastróficas das moléstias disseminadas pelo branco, como a ausência de escrúpulos com que este se comporta na conquista e na exploração de novas áreas do sertão.
Logo nos primeiros anos estivera às voltas com um dos casos mais dolorosos de que há notícia no desbravamento do interior paulista. Descreveu-o num relatório publicado em 1910 pela "Deutsche Zeitung" de São Paulo e, de forma resumida, em "O Estado de São Paulo" de novembro de 191115. Tratava-se da tribo dos Otí, gente muito primitiva do oeste de São Paulo, que não conhecia a cerâmica, nem a lavoura, nem mesmo o uso de canoas. Viviam êsses índios em território mal aquinhoado pela natureza, caçando lagartixas, cobras e pequenos roedores. Tão pequenos eram os seus ranchos que nêles não se podia ficar em pé. Mas os Otí, destros no manejo de arco e flecha, eram temidos pelas tribos vizinhas como valentes guerreiros. Eis que, em meados do século passado, alguns fazendeiros do sul de Minas, em procura de novas pastagens, levaram o seu gado aos campos dos Otí. Aos pobres índios, acostumados à fome, isso parecia uma dádiva dos céus. Com tôda inocência, matavam e comiam as rêzes. Ficaram até morando na proximidade dos fazendeiros e foram colhidos de surprêsa quando êstes desencadearam contra êles uma cruenta e inexorável guerra de extermínio. Eram tão ingênuos, ao que se afirmava, que, atingidos por uma carga de chumbo e antes de sentirem a dor, se riam e se coçavam. Dentro em pouco estavam reduzidos a um pequeno grupo, que se retirou para uma área de refúgio. Para os sitiantes brancos, porém, vieram dias difíceis, pois os Kaingang, até então combatidos pelos Otí, já não tinham quem os impedisse de assaltar as fazendas. Em 1903 os Otí bravios estavam reduzidos a um homem, quatro mulheres e quatro crianças. Ainda nesse ano foi morto o homem. As mulheres ficaram vagando pelos campos. Um dia, acossadas pelos Kaingáng, foram pedir proteção a um grupo de brancos que trabalhava numa roça de milho. Êstes, tomando-as por Kaingáng, atiraram contra uma delas. Com a criança nos braços, caiu no chão. No dia seguinte, encontraram o cadáver e, a pouca distância, a criança, ainda viva. Certa ocasião, em 1908, as três mulheres sobreviventes foram vistas por um campeiro. Estavam ainda com uma criança. Depois um viajante viu apenas duas, acocoradas à beira do caminho; cobriam o rosto com as mãos. Nessa epoca, Nimuendajú, por encargo do Museu Paulista, foi à sua procura. Descobriu algumas choças, tão pequenas e miseráveis que mal se podia entrar nelas. Pouco mais tarde soube que uma índia bravia tentara aproximar-se de um camarada que estava cortando cipós. Êsse era nôvo na região, não sabia nada de índios, e, julgando tratar-se de uma louca, fugiu. Durante uma semana Nimuendajú percorreu o campo, sem encontrar vestígio das infelizes. Nada lhe
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restou fazer senão relatar a triste história da tribo. E pela vida a fora não lhe faltaria ocasião para contar fatos não menos deprimentes. Em sua longa carreira de indianista presenciou o declínio rápido ou a fase final da existência de muitas populações nativas outrora numerosas e felizes.
Foi incansável em denunciar os crimes praticados contra os índios por seringalistas, madeireiros e outros representantes da civilização. Em um de seus relatórios ao Serviço de Proteção aos Índios, em que, a certa altura, traça o perfil de um tal Constantino, estabelecido na área do Xingu, lemos as seguintes frases: "As suas primeiras vítimas foram aquêles míseros restos dos Yuruna, dantes tão numerosos, que tinham fugido até acima da Cachoeira de Martius. Constantino mandou buscá-los por um mateiro, tripulou logo uma embarcação grande com 15 canoeiros Yuruna e desceu a Altamira, onde 13 dêles morreram miseràvelmente: eu mesmo assisti a esta tragédia em 1915. Quando os que haviam ficado no barracão souberam o que acontecera, o seu velho chefe Máma fugiu com o resto rio acima, levando a canoa de Constantino. Êste perseguiu os fugitivos, alcançou-os e massacrou-os. Debaixo das gargalhadas de seus cabras êle mesmo me contou esta façanha"16.
Com coragem, paciência e habilidade conseguiu Nimuendajú em 1922 a pacificação dos Parintintín, tribo amazonense do Rio Madeira até então tida como "indomável". Até 1920 não se sabia quase nada dos Parintintín e de sua cultura. Entre os brasileiros, diz o indianista, tinham ''péssima fama". Fato é que reagiram de forma hostil às suas tentativas de com êles entrar em contacto. A cabana de fôlhas de ferro zincado, construída por Nimuendajú e alguns companheiros no âmago da floresta, à margem do Maici-Mirim, foi durante algum tempo alvo predileto das flechas dos índios, naturalmente ansiosos por eliminar o mais depressa possível os inoportunos invasores de seu território. Mas a perseverança do pacificador afinal os levou a mudar de atitude. Graças a presentes e a vozes na Língua Geral, parecida com o idioma da tribo, convenceram-se pouco a pouco das boas intenções com que eram procurados.
Tratava-se de tribo provàvelmente antropófaga. "Não vi os Parintintin comerem carne humana, escreve Nimuendajú, mas da maneira como os conheço, acho-os muito capazes de o fazer, e ocasionalmente ouvi de sua bôca coisas que tornam provável a existência dêste costume entre êles." Não faziam, aliás, segrêdo disso. "Por diversas vêzes, cara a cara, êles têm ameaçado de comer-nos". Um moço que se tornara amigo dos forasteiros, zangando-se por um motivo qualquer, sentou-se ao lado do indianista e disse-lhe em voz baixa e com olhar cheio de ódio: "Os teus pés eu quero comer! Os teus olhos eu quero comer! É bom!"17.
Como sói acontecer, a aceitação de relações pacíficas com o mundo dos brancos foi o passo inicial para o declínio da tribo dos Parintintín, hoje
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reduzida a uns míseros restos. Desde logo, o impacto de epidemias teve efeito devastador, e Nimuendajú não tardou a lamentar a emprêsa que executara com tanta coragem e firmeza. "Nunca mais, disse, ajudarei a pacificar uma tribo"18.
Não foi por excentricidade romântica que em 1905 o jovem alemão, de vinte e poucos anos de idade e mal chegado da Europa, se embrenhou pelo sertão paulista para viver com os índios e à maneira deles. Êle mesmo o testemunha em um de seus primeiros artigos, "Zur Coroadofrage", de 1910. Discute aí a afirmação, corriqueira na época, de que os freqüentes ataques dos Kaingáng na região da Noroeste eram devidos a interferência de indivíduos de passado duvidoso que no recôndito das florestas procuravam ficar a salvo da justiça. "Nem se compreende, escreve, por que motivo poderia alguém que não seja índio, ainda mais um alemão, associar-se a essa tribo bravia a não ser talvez por intuitos científicos ou sociais. Gente que não conhece por experiência própria a vida indígena encontra logo a explicação: trata-se de criminosos, que, escapando à justiça, se refugiaram entre os selvagens. Ora, a um criminoso que por sua vontade se submetesse a castigo dessa ordem quase que se poderiam perdoar todos os demais. A vida do sílvicola sul-brasileiro é tão incrìvelmente miserável, tão cheia de penúria e privações, de perseguição e de perigos, o convívio prolongado com os selvagens pueris, teimosos e obstinados de tal modo insuportável, que um criminoso fugitivo deveria estar positivamente maluco para submeter-se a tudo isso espontâneamente à vista da fronteira próxima de Mato Grosso e do Paraná onde se lhe abre carreira bem melhor do que no convívio com uma horda de índios bravios, votada ao extermínio"19. Êste não é o tom de um aventureiro, mas de quem avalia os sacrifícios a que se dispõe por ter em mira um objetivo definido. Por outro lado, se Nimuendajú carrega nas tintas ao falar das agruras, não é que lhe escapem as alegrias que a vida, até a mais árdua, oferece a quem saiba encontrá-las. Quando, em 1928 e 1929, realizou uma expediçao ao interior do nordeste brasileiro, a fim de estudar as tribos jê da região e fazer coleções etnográficas para museus da Europa, declara, em carta ao Padre Koppers, que a sua permanência na tribo dos Apinayé, que o tratavam com grande afabilidade, se inscrevia entre as recordações mais gratas de sua vida. Também entre os Ramkokramekrã obteve a amizade dos índios e em especial — acrescenta — das índias, que gastavam horas a fio em pintá-lo da cabeça aos pés e que o enfeitavam como uma árvore de Natal. Entretanto, também não faltavam aí circunstâncias negativas, que tornavam penosa a estada na tribo. Uma das pragas eram os vendedores de cachaça, que de dois em dois dias apareciam na aldeia e contra os quais teve de tomar afinal atitude enérgica para mantê-los afastados. E aborrecia-o a insistência com que os indígenas o assediavam com pedidos de tôda sorte. "Imagine bem o senhor, diz êle em
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sua carta, o que significa conviver pelo espaço de um mês ou mais com um bando de 300 pedintes e ter de mantê-los com boa disposição de ânimo!"20.
O que talvez defina melhor do que qualquer outra coisa a personalidade indianista de Curt Nimuendajú foi a plenitude com que lograva identificar-se com a vida e a maneira de ser das tribos por êle visitadas e estudadas. Fala-se muito em observação participante com referência à pesquisa antropológica moderna. Poucos são, porém, os que têm idéia precisa do que isto venha a ser. Não basta comer alimentos indígenas, beber cauim de milho ou de batata doce, dormir em rêde de buriti, pintar-se com jenipapo e urucu e participar de danças e cerimônias tribais — é preciso sentir na própria carne os problemas do grupo como os próprios, temer as mêsmas ameaças, acalentar as mesmas esperanças, encolerizar-se com as mesmas injustiças e arbitrariedades. Foi por esta porta que o jovem Nimuendajú entrou na antropologia. Tudo o mais veio depois.
É claro que os índios por sua vez sentiam perfeitamente a atitude com que eram por êle tratados. Daí a rapidez com que em geral lhes granjeava a confiança e a amizade. Não nos admiraríamos se um dia viesse a ser mencionado, por tais ou quais índios, entre os heróis civilizadores da tribo. Entre os Ñandeva-Guaraní — ou Apapokúva, como êle os chamava — encontrei viva não sòmente a recordação de sua pessoa, o que era natural, pois havia na aldeia índios que o conheceram pessoalmente, mas sobretudo a imagem do benfeitor e do defensor, que sempre e em tôda parte tomava as dores de seus irmãos de tribo e que, segundo o testemunho do velho Poýdjú, chegou a instalar no Araribá uma escolinha de primeiras letras para êle próprio alfabetizar as crianças.
A tal ponto os índios passavam a considerá-lo como um dos seus que, por exemplo, os Apinayé acabaram por casá-lo nolens volens com uma jovem da tribo21. Por seu turno, os Ramkokámekrã, depois de êle lhes captar a amizade, o homenagearam com uma cerimônia na praça da aldeia, em que lhe impuseram, como honra máxima, o nome do chefe supremo da tribo, que havia falecido22.
Não sòmente os índios o tinham por um dos seus. Êle próprio se considerava índio em sentido pleno da palavra. Com a maior naturalidade se apresenta aos leitores da "Zeitschrift für Ethnologie" (1914) como membro da horda dos Apapokúva. E, narrando ter certa vez adoecido na aldeia do Araribá, prostrado pela subnutrição, pelo impaludismo e pela disenteria, afirma que foi a medicina guaraní que o salvou após êle haver perdido a esperança de sobreviver e ter assistido, um pouco prematuramente, à fase inicial de sua própria cerimônia fúnebre. O curioso é que a maneira de relatar o acontecimento deixa no leitor a impressão de que o indianista foi salvo realmente pelas canções mágico-religiosas do sacerdote guarani23. Parecia haver criado em si a necessidade psíquica de ser tido e de se ter por índio para todos os efeitos.
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Por isso mesmo, era grande o seu desapontamento quando algum grupo o tratava como a qualquer outro civilizado: com desconfiança e até com desprêzo. A experiência que teve entre as tribos do Içana, do Aiari e do Uaupés, relata-a com as seguintes palavras: "O índio hoje vê em qualquer civilizado com que êle depara o seu algoz implacável e uma fera temível. É hoje trabalho perdido querer conquistar a confiança do índio por meio de tratamento fraternal e justiceiro. Mesmo os atos mais desinteressados êle os atribui a motivos sujos, convencido de que só por uma conveniência qualquer o civilizado disfarça ocasionalmente a sua natureza de fera. Para mim pessoalmente, acostumado à convivência íntima com os índios das tribos e regiões mais diferentes, a permanência entre os do Içana e Uaupés foi muitas vêzes um verdadeiro martírio, vendo-me sem mais nem menos e com a maior naturalidade tratado como criminoso, perverso e bruto"24. Não nos é difícil imaginar o estado de alma com que estas palavras foram lançadas no papel.
Um dos fatos que mais o preocupavam era a maneira pela qual os índios são espoliados de suas primitivas terras. Volta e meia insiste na necessidade de se adotarem medidas eficientes no sentido de debelar o mal. Num relatório sôbre os Maxakalí, após expor a situação por êle observada, acrescenta cheio de indignação: "então dêem-se aos índios outras terras para suas habitações, porque enfim 140 índios não podem ficar sem mais nem menos nos galhos dos paus"25.
Bem se vê que não foi por espírito de aventura que Nimuendajú escolheu a vida que levou. Moviam-no desde cêdo a curiosidade do cientista e, ao mesmo tempo, um genuíno idealismo humanitário. É neste sentido, a meu ver, que se deve entender também a frase final de um artigo, publicado em 1910, em que descreve com riqueza de pormenores a sua adoção na horda dos Apapokúva. Eis como se exprime: "Quando daí a meia hora o sol se ergueu atrás da floresta, os seus raios iluminaram um nôvo companheiro de tribo dos Guaraní, o qual, a despeito de sua pele clara, compartilhou com êles fielmente, pelo espaço de dois anos, a miséria de um povo moribundo"26.
Os que conheceram Curt Nimuendajú não o retratam como pessoa alegre e expansiva. Há, ao contrário, quem o descreva como sorumbático, misantropo, taciturno e de índole esquiva; em suas viagens pela Amazônia teria passado dias e dias sem falar com quem quer que fôsse, preferindo olhar sem parar, dia e noite, a corrente das águas. Não sei até onde vai o exagêro dêsse retrato, mas é bem possível que uma vida de quarenta anos de sertão não arruíne apenas a saúde física, como lha arruinou, mas também imprima ao espírito um cunho de melancolismo. Ninguém, diria Goethe, vive impunemente à sombra das palmeiras.
Mas há também os que lembram e destacam a sua maneira afável no trato com os que tinham a sua estima; recordam-lhe o idealismo, a sim-
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plicidade quase desconcertante e, acima de tudo, a palestra sempre viva e douta.
Uma coisa é certa. O seu ideal humanitário e o espírito de indagação científica se mantiveram acesos até o último dia com o ardor dos anos de estréia. Oxalá todos pudessem no fim da vida sentir a satisfação de a ter, como êle, dedicado integralmente à realização de uma idéia elevada e nobre!
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