Duas palavras de apresentação (Schaden 1979)
[7]

DUAS PALAVRAS DE APRESENTAÇÃO


Desde o século XVI, cronistas, missionários, viajantes e historiadores trataram de compor o quadro etnográfico da outrora Capitania de São Vicente e de suas adjacências. Devido, entretanto, à confusão dos etnônimos, à notória mobilidade espacial dos grupos nativos (sobretudo no período da Colônia), às lacunas e incongruências nas informações registradas e a outros tantos empecilhos, as descrições e os estudos se encontram ainda hoje eivados de controvérsias, senão de contradições.

Confrontando os dados de vária procedência — uns antigos, outros mais recentes —, sem a pretensão de dissipar as névoas que envolvem o assunto, o Professor Paulo Pereira dos Reis elaborou um trabalho de indiscutível importância. Além de passar em revista os informes disponíveis na bibliografia e de examiná-los, com a devida serenidade e isenção, quanto ao seu valor intrínseco, foi buscar referências elucidativas em fontes praticamente inacessíveis aos estudiosos, muitas delas inéditas. Ademais, reproduziu o testemunho de naturalistas viajantes e outros observadores, que se encontram editados, mas nem por isso existentes em muitas bibliotecas universitárias ou de institutos de pesquisa.

Ora bem, de tudo isso resultou um texto — dir-se-ia quase um compêndio — que tem o mérito de expor e de apresentar, sem alarde, o que de essencial sabemos sobre o assunto e fazer entrever o quanto resta por investigar. Ou seja, um instrumento de trabalho de considerável utilidade para os que começam a enveredar pelo caminho da Etno-história de nossos índios, como para os que porventura já se tenham por especialistas na área.

Sinceros parabéns, pois, ao autor, na expectativa de que prossiga em suas investigações e de que outros sigam o seu exemplo.

Mas que ninguém se iluda. O trabalho não é fácil. A reconstituição da Etno-história de nossas populações aborígines desde a chegada dos primeiros europeus é tarefa árdua, que requer muita paciência, longos anos de pesquisa e, sobretudo,

[8]

atilado espírito crítico. Devido às lacunas de informação em livros e documentos — uns publicados, outros ainda enterrados em arquivos —, não chegamos, na maioria dos casos, a estabelecer com razoável segurança o processo decorrido desde os contactos iniciais entre os índios e os conquistadores europeus. Ninguém sabe de quantos grupos a única memória que existe é apenas o nome tribal ou, talvez, um apelido qualquer dado por índios vizinhos ou invasores brancos. O pesquisador cauteloso, então, em vez de propor conclusões definitivas, estribado em tal ou qual autor de outros tempos, se há de contentar com hipóteses razoavelmente fundamentadas ou com sugestões que — mais dia, menos dia — possam ajudar a compreender o que havia e o que se passou.

Por longo tempo, o fascínio pelo exótico ou "extravagante", que os observadores ou estudiosos deparavam nos sistemas de vida das tribos aborígines, os fez ignorar o que de interessante — em sentido histórico, sociológico e antropológico — marcou a trajetória do índio em seu convívio com o mundo dos brancos: muitas coisas deixaram de ser registradas, a não ser de esguelha, como simples referências marginais, mais ou menos rápidas, em relatórios, cartas ou documentos de outra natureza. Já não há como recuperar o que se perdeu. Cumpre agora fazer o possível e o impossível para preservar o que ainda existe, sobretudo dos documentos, sempre tão cobiçados pelos ratos e pelas traças.

Com o presente trabalho, concebido preliminarmente como simples capítulo introdutório a uma obra um tanto exaustiva sobre a história do Vale do Paraíba e de regiões vizinhas, mas que afinal resultou num repositório bem coordenado dos dados e informações sobre os nativos desse território, com citação precisa das fontes onde foram colhidos, o Professor Paulo Pereira dos Reis presta inestimável serviço à Etno-história indígena do Brasil. O que lhe aumenta o valor são o espírito crítico e a atitude cautelosa com que o autor encara o que sobre o assunto se publicou e o que, com freqüência, se reduz a mal-entendidos, senão a meras conjeturas. E, mais ainda, a consciência de que, no tocante a certos problemas, é preferível não aventurar-se a hipóteses arrojadas que jamais poderiam encontrar comprovação na documentação existente.

Dentre os assuntos tratados no livro objeto desta apreciação destacam-se dois pela seriedade com que o autor os abordou, no empenho de coordenar e discutir os conhecimentos sobre eles disponíveis. Um deles é o problema dos Guayaná, já estudado por muitos autores, cujos resultados, entretanto, em geral, por falta de documentação suficiente ou fidedigna, se

[9]

resumem em hipóteses ora mais, ora menos aceitáveis. O Professor Pereira dos Reis passa em revista as opiniões dos vários estudiosos e confronta-as, aduzindo elementos novos que elucidam vários pontos que até agora haviarn ficado obscuros.

O segundo assunto que merece menção especial é o dos índios Puri, de há muito extintos, sobre cuja língua e cultura os nossos conhecimentos são muito precários e imprecisos; além de esparsos de permeio com outros informes em relatórios de viagem do século passado, sofrem do mal de visões etnocêntricas, inevitáveis, evidentemente, numa época em que a Etnologia mal começava a esboçar critérios válidos para a análise científica. Como quer que seja, Pereira dos Reis coligiu, com paciência beneditina, o material que encontrou, que foi selecionado, classificado e disposto de forma racional, propiciando uma visão geral sobre o indígena vale-paraibano, com as limitações apenas decorrentes da carência de documentos idôneos que permitissem, em certos casos, afirmações categóricas.

Oxalá tivéssemos algumas dezenas de trabalhos similares sobre a Etno-história indígena de outras regiões do Brasil. Muitos erros que se vêm perpetuando na bibliografia, inclusive didática, seriam corrigidos de uma vez por todas.

São Paulo, 31 de janeiro de 1979

EGON SCHADEN

This site is part of the Etnolinguistica.Org network.
Except where otherwise noted, content on this site is licensed under a Creative Commons Attribution 3.0 License.