- Ribeiro, Darcy. 1987. Apresentação. In Meggers, Betty J. 1987. Amazônia : A ilusão de um paraíso, p. 11-20. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp.
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EM SUA SALA de trabalho em Washington, uma mulher inquieta medita sobre o destino de nossos mundos amazônicos. Não é, como costuma ocorrer ali, uma conspiradora da CIA, arquitetando ações preventivas de contra-insurgência. Tampouco é uma estrategista hudsoniana, planejando apoderar-se de recursos escassos para a eventualidade de futuras guerras. É tão-somente uma antropóloga, que aprendeu a cultivar e exercer a ciência como um meio de ver mais longe, mais claro e, sobretudo, para sentir mais fundo seu sentimento de gente entre gentes.
Falo de minha amiga Betty Meggers. Vejo-a sentada no mesmo lugar onde, há 129 anos, um cacique dos Duwarnish respondia à carta em que o Presidente dos Estados Unidos "propunha" a compra de seu território tribal para ali edificar a cidade de Washington. Betty hoje, como Seathl ontem, padece a dor de sua impotência frente os perigos que prevê, mas contra os quais nada pode fazer. Ela como ele só tem a capacidade de prefigurar e o dom de falar das ameaças que pesam sobre "a pureza do ar", o "resplendor das águas" e o verdor das florestas de uma província da terra que é, para ambos, "como para um recém-nascido o latejar do coração de sua mãe".
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Seathl deixou uma carta terrível, por sua retidão e sua beleza, que até hoje nos comove, embora comova apenas. Betty nos dá um livro sábio e belo: Amazônia: a ilusão de um paraíso, que apresento aos leitores das edições mexicana e brasileira, desejando de todo o coração que não nos comova apenas.Com efeito, é preciso muito mais do que isso. Já não se trata agora de que as águas e os bosques do Potomac sejam entregues a gente incapaz de amá-los e respeitá-los. Trata-se de salvar de uma destruição perfeitamente evitável a maior das selvas virgens e de defender da poluição o mais portentoso rio da terra. Trata-se de salvar, enquanto é tempo, toda uma fonte prodigiosa de vida para que, ao florescer amanhã, faça da Amazônia o grande jardim terrenal que os homens do futuro desejarão ver, cheirar, sentir, admirar.
Para alcançar este objetivo, Betty Meggers dá uma contribuição inestimável com este estudo das culturas amazônicas, como parte de um complexo sistema de adaptação ecológica. Em suas poucas páginas, Amazônia constitui uma das obras mais importantes que a antropologia produziu nos últimos anos e, sem dúvida, a mais significativa para as zonas tropicais. Utilizando o método comparativo e uma extraordinária capacidade de interpretação e síntese, Betty Meggers submete à crítica antropológica o saber científico sobre a vida humana na selva tropical, proporcionando-nos uma apreciação de uma lucidez e clarividência até agora inatingidas sobre a aventura humana na Amazônia. E também uma veemente advertência sobre a catástrofe ecológica que ali se está processando e que ameaça uma parte importante da vida na terra.
Bem sei que uso grandes palavras e minha mão treme ao escrevê-las. Faço-o porque estou convencido de que elas são justas e verdadeiras. Betty Meggers nos oferece, realmente, uma obra exemplar pelo emprego sistemático do método comparativo para examinar transculturalmente um tema e pô-lo à prova mediante a confrontação dos fatos com a teoria. Assim
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procedendo, consegue alcançar um conhecimento mais acurado das sociedades e culturas que examina e, ao mesmo tempo, efetuar uma avaliação crítica do saber antropológico sobre questões que acreditávamos compreender muito bem mas que só agora deixam transparecer suas funções ocultas. É o caso de temas como a anticoncepção, o aborto, o infanticídio, a guerra, a feitiçaria, os costumes relacionados com a divisão sexual do trabalho. Todos eles comparecem, redefinidos por Betty Meggers, como mecanismos de controle do meio-ambiente e reguladores da população. O mesmo ocorre com fatores aparentemente tão afastados da adaptação comportamental, como o etnocentrismo, as concepções do sagrado e do profano e o adultério. Mas a análise de Betty Meggers vai mais longe, incluindo em suas indagações o reexame crítico da função ecológica da variação das técnicas nativas, de coleta, caça e pesca; a reavaliação das características do cultivo itinerante realizado mediante a derrubada da mata, queima e plantio; das práticas relativas ao cuidado do corpo; dos processos de conservação e consumo de alimentos; das formas de organização da aldeia e das dimensões da casa. Reexaminados como respostas culturais específicas a exigências do meio-ambiente, estes velhos temas, tão trabalhados pela erudição etnológica, ressurgem à luz de novos questionamentos que iluminam suas faces ocultas.
O mais assinalável, contudo, é sua postura com relação a temas não só cientificamente significativos por sua capacidade explicativa, mas também socialmente relevantes. Especialmente no que diz respeito a essa feia e sofrida humanidade que a civilização colocou na Amazônia no lugar da gente bela e sadia que, ao longo de milênios, construiu ali um habitat ecologicamente equilibrado. A autora analisa este tema em três etapas.
Primeiramente, nos oferece uma perspectiva geral dos dois principais ecossistemas da Amazônia: o das terras altas que cobrem milhares e milhares de quilômetros quadrados de pla-
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nícies estéreis, embora cobertas de florestas de uma exuberância prodigiosa; e a estreita faixa de várzeas — terras baixas inundáveis — extraordinariamente férteis porque anualmente rejuvenescidas pelo lodo carreado pelas enxurradas que descem dos Andes. Em seguida reconstitui o sistema adaptativo de cinco tribos indígenas habitantes de terras altas e de dois povos desaparecidos que viviam nas várzeas até um século e meio após a chegada dos europeus.
Apesar de ater-se à sua preocupação básica — o exame do modo pelo qual cada povo, com base em sua cultura, explora o potencial de subsistência do ambiente em que vive —, suas reconstruções são sínteses admiráveis do quanto se sabe sobre esses povos. Particularmente os capítulos referentes aos Omagua e aos Tapajós, que representam o melhor que se tem escrito sobre sua vida e sua cultura.
Os cinco primeiros ensaios foram redigidos graças às observações diretas da autora, à bibliografia etnográfica pertinente e a entrevistas com etnólogos que realizaram estudos de campo junto àqueles grupos. Os dois últimos se apóiam na investigação arqueológica e, principalmente, na exploração exaustiva de dados dos cronistas que, entre 1542 e 1692, deram notícias dos povos amazônicos das várzeas que eram os que contavam com populações mais numerosas e possuíam culturas mais elaboradas. Aqui, Betty Meggers faz milagres de dedução à base de informações dispersas e precárias, graças à acuidade em perceber os fatos despertada por sua familiaridade com o ofício dos arqueólogos, que se nutre de elementos escassos. Tendo que apurar tudo a partir de quase nada, contando apenas com alguns ossos queimados e restos de cerâmica deixados por povoadores prístinos, os arqueólogos aprendem, necessariamente, a combinar fatos com uma destreza extraordinária. Nós, etnólogos, que convivemos longos anos — quase sempre de forma grata — com os povos que estudamos, observando-os em toda a complexidade de sua vida, raramente extraímos de nossas pesquisas o saber e o sabor que esta ar-
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queóloga erudita deduz de umas poucas crônicas e alguns cacos. Mas além de reconstruções primorosas Betty nos oferece racionalizações desafiantes, fundamentadas por um amplo esquema teórico que permite, pela primeira vez, avaliar de maneira crítica o desempenho evolutivo dos povos da floresta tropical.
Nas duas últimas partes do seu livro, Betty Meggers procede a um balanço das formas modernas de adaptação à Amazônia, demonstrando que elas levam a um verdadeiro desastre ecológico. Rompida a harmonia da comunidade biótica alcançada pelas culturas indígenas, desencadeia-se ali um processo, aparentemente irreversível, de deterioração do solo, extinção da flora e extermínio da fauna que conduzirá à liquidação, em prazos previsíveis, das bases da vida humana na região. Betty encerra seu livro com uma lúcida discussão sobre o significado do estudo das formas de adaptação à selva tropical para as teorias da evolução.
Como acentuamos, o cenário do livro é a floresta amazônica que a autora nos apresenta como uma façanha da seleção natural. Ali, nas condições mais adversas, a luta pela vida teceu, antes da chegada do homem, um ecossistema de complexidade fantástica, de diversidade quase infinita e de maravilhosa integração. Trata-se de uma situação única em que, sobre terras áridas, envoltas por um calor úmido e sujeitas a dilúvios torrenciais, a natureza se fez a si própria, construindo-se como um sistema fechado e auto-sustentado de reciclagem de nutrientes que circulam da terra e do ar, abastecendo a vida vegetal e animal. Reabsorvendo todos os detritos, provocam uma explosão fabulosa de vida florestal.
Betty nos mostra como dentro desta floresta luxuriosa, formada nas últimas idades da terra, os homens — chegados por último — fizeram seus nichos e os foram variando de acordo com diferentes modelos adaptativos. Conservando-se essencialmente, os mesmos elementos geológicos, climáticos, florestais e animais e permanecendo as comunidades huma-
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nas igualmente uniformes em suas potencialidades básicas, surgiu um padrão geral de adaptação humana à natureza tropical. Betty Meggers estuda esse padrão em suas configurações fundamentais que respondem à diversificação dos meios naturais. Cada uma delas encerra em si uma sabedoria milenária, expressa na classificação e nominação da floresta e seus seres, para colocá-los a serviço do homem, através da domesticação das plantas de cultivo, das inúmeras técnicas de coleta, caça e pesca, da utilização de vegetais e animais que permitiram produzir e reproduzir as condições de sobrevivência dos grupos humanos sem causar danos irreparáveis à natureza circundante.
Assim passaram milênios até que surgiram os agentes de nossa civilização munidos, também ali, da capacidade de agredir e ferir mortalmente o equilíbrio milagrosamente logrado por aquelas formas complexas de vida. A agressão européia se fez de duas maneiras: mediante as pestes trazidas pelos brancos e por sua atitude cruamente mercantilista, própria de quem só desejava arrancar da região aquilo que permitisse enriquecer a vida em outras paragens. Isto só se tornou possível porque os promotores dessa devastação, estando ausentes, jamais se viram submetidos ao processo de degradação da vida que desencadearam.
As primeiras vítimas desta agressão ecológica, econômica e cultural foram as comunidades humanas originais, contaminadas, desenraizadas, escravizadas, dizimadas e, finalmente, substituídas por outros grupos humanos. Simultaneamente se viu afetada a vida animal em sua prodigiosa variedade, chegando quase a desaparecer as aves que colmavarn os céus, os peixes, tartarugas e crocodilos que coalhavam as águas, os animais de caça que habitavam as selvas. Muitas espécies foram objeto de uma exploração mercantil desenfreada e em geral todos os seres viventes experimentaram um fantástico desgaste.
Betty Meggers reconstrói para nós a crônica terrível desta invasão e sucessão ecológica. Passo a passo podemos acompanhar sua marcha avassaladora. A princípio, registram-na os testemunhos dos primeiros europeus que, ao ver a floresta por-
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tentosa, acreditaram ter encontrado, por fim, o tão buscado paraíso perdido. O mais remarcável, a seus olhos, eram as gentes idílicas e sadias em sua nudez, às quais atribuíam a inocência do primeiro dia da criação. Surgem depois os relatos dos missionários, impregnados da preocupação de demonstrar que não se podia falar de vida paradisíaca entre populações pagãs, nuas, entregues ao incesto, ao infanticídio, ao canibalismo e à redução de cabeças. Reconheciam que os indígenas eram numerosos e dotados de uma buliçosa alegria de viver, mas insistiam em que eram inegavelmente preguiçosos e carentes de qualquer ambição. Seu único prazer consistia em folgar, dançar, fornicar e rir. Riam demasiado.
Com a chegada destes moralistas virtuosos começa a débâcle da vida, pois seu objetivo era acabar com os costumes gentílicos. Prossegue com os colonizadores, que vieram depois, a fim de recrutar, em trabalhos forçados, toda aquela humanidade folgazã. Imersos nesse redemoinho de virtudes cristãs e de motivações mercantis, os amazônicos viram perder-se a abundância dos alimentos que consumiam e dos bens que eles próprios faziam e usavam, para produzir, com seu trabalho, mercadorias exportáveis. Com a civilização começa a era da fome e da penúria. Os testemunhos escritos já não falam de paraíso. Sua imagem preferida é o "inferno verde" e seu maior temor é suscitado pelas "doenças tropicais" trazidas, efetivamente, do além-mar, apodrecendo a vida humana ao longo de toda a região.
Testemunhei este ciclo secular de vida e morte nos dez anos de minha existência dedicados a estudar os povos indígenas da Amazônia. Vi com meus próprios olhos os indígenas isolados, na alegria de sua existência livre e bela, na candura de sua nudez adornada de plumas e pinturas, na fartura de seus cultivos, de suas caçadas coletivas e na riqueza de sua economia voltada à reprodução das condições de sua própria existência. Mas também sofri ao revê-los, após alguns anos de
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contato com a civilização — às vezes as mesmas pessoas —, cobrindo de farrapos sua esquálida nudez envergonhada, sorrindo com suas bocas de dentes podres, num esforço supremo por expressar alegria ao ver-me conservado e forte.
Às lições de Betty só tenho a acrescentar, como fruto de minha própria experiência, uma observação que considero pertinente e à qual ela também alude. Refiro-me à caracterização da Amazônia como paraíso terrestre e como inferno verde que, em certos casos, pode corresponder à observação direta e objetiva dos grupos indígenas das terras altas nas duas estações do ano. Isto é o que Betty assinala para os povos da várzea e também o que pude observar entre os índios Urubus-Kaapor1 que vivem na fronteira oriental da floresta amazônica. Cada ano experimentam dois ciclos bem diferenciados de subsistência. No período que vai de dezembro a março, existe uma abundância extraordinária de frutos silvestres, de pesca e de caça, o que, somado ao produto de suas roças, lhes garante a fartura. Nessas ocasiões eles engordam a olhos vistos e sua vida parece fácil e alegre. Em outro período do ano, especialmente de maio a agosto, impera a escassez e a penúria. As pessoas visivelmente definham e toda a vida se torna penosa. Um observador que os visitasse em um desses períodos teria uma impressão falsa de superabundância paradisíaca ou de penúria atroz, o que matiza as imagens que nos proporciona Betty Meggers deste paraíso ilusório que é a Amazônia.
Dentre a copiosa bibliografia sobre a Amazônia, o livro de Betty Meggers se destaca por uma qualidade que aprecio sobre todas as outras. Além de ser um livro sábio, é um livro belo, sentido e solidário. Aqui o cientista não estuda gente,
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animais e plantas indiferente à sua vida e ao seu destino. Em lugar disto, o que busca é compreendê-los melhor para melhor protegê-los. Por isso, seu interesse se concentra tanto nos fatos significativos, que permitem ampliar e melhorar o discurso do saber humano, como nos eventos que dizem respeito aos problemas colocados por sua sobrevivência e florescimento.
Graças a esta postura, Betty Meggers jamais abdica do compromisso com a objetividade que a ciência exige. Mas tampouco se exime em revelar-nos sua dor ante a tragédia que vivem os povoadores originais deste paraíso inverossímil invadido pela civilização européia. E sua tristeza ao ver as pobres e precárias formas de vida humana que a civilização fez surgir nas florestas mais exuberantes da terra.
Temo muito, entretanto, que o problema seja mais grave do que Betty Meggers supõe. Com efeito, além das sérias ameaças que ela aponta, têm surgido outras, nos últimos anos, talvez ainda mais perigosas, posto que se apresentam com todo o potencial destrutivo da tecnologia civilizadora que está corrompendo o mundo inteiro. Ademais do poder destruidor da economia extrativista de produtos florestais, que aniquilou populações indígenas e caboclas ao longo de décadas; além dos intentos larvares de colonização granjeira da Amazônia com camponeses do nordeste brasileiro, surgiram e se expandiram em anos recentes duas formas ainda mais catastróficas de extirpação. Primeiro, a tentativa insana de converter a selva amazônica em campos de criação de gado, levada a cabo sobre milhares de hectares na fronteira sul da Amazônia brasileira. Segundo, os experimentos tendentes a substituir a floresta original por plantações de espécies exóticas, como a gmelina arborea, em imensas extensões da fronteira norte. A primeira ameaça, embora levada a efeito por grandes empresas privadas, principalmente estrangeiras, atende a programas oficiais amplamente subsidiados pelo Estado. Propende, por isso, a expandir-se, com o que produzirá, em poucos anos, um deserto onde antes florescia a selva. A segunda ameaça é empreendida
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por corporações multinacionais poderosíssimas que, movidas pelo afã de lucro, especulam com a crise da produção mundial de papel. Mas ao invés de desenvolverem uma tecnologia de produção de papel com madeiras heterogêneas, como as que proporciona a floresta amazônica, destroem fabulosas massas de celulose da selva original para lançar-se à aventura, de êxito muito improvável, que consiste em introduzir ali uma árvore alienígena. O subsídio oficial em um caso, a especulação internacional no outro, se somam às graves ameaças estudadas por Betty Meggers para colocar em risco de destruição irremediável, em nossos dias e sob nossos olhos a mais bela e prodigiosa das selvas que jamais floresceu.
Por tudo isto é necessário prestar a maior atenção às advertências de Betty Meggers. Ela nos fala de uma tragédia que fatalmente acontecerá se uma luz de clarividência não iluminar prontamente os espíritos dos que têm poder de decisão sobre a política de ocupação da Amazônia. Urge preveni-los do muito que se poderia fazer, com apoio no saber científico, e do descalabro e pequenez do que se está fazendo. Preveni-los e adverti-los, se possível, com argumentos que soem a seus ouvidos como o clamor das vozes dos que serão os netos deserdados e famintos dos que hoje habitam a Amazônia.