Pastor, Profeta, Poeta, Santo (Boff 1979)

Pastor, Profeta, Poeta, Santo

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A grandeza de um homem não se mede pelas prédicas mas pelas práticas. São estas que emprestam grandeza àquelas.

O livro que temos a honra de prefaciar relata as práticas do bispo Dom Pedro Casaldáliga no submundo em que se localiza seu campo pastoral, São Félix do Araguaia-MT. Ele se confunde com a terra e com os homens. Faz corpo com eles. Por isso suas palavras têm cheiro de chão, peso de pedras, força das águas, brilho de raio, lirismo de olhos de vaca.

Na verdade, ele não fala palavras, fala coisas. Por isso este livro fala somente de Pedro enquanto ele está misturado com as coisas e fermenta com a situação: "Nós do Araguaia", não eu; mas "a Igreja aqui", o povo "que me mostrou suas chagas, suas dores, sua esperança … que me recebeu em sua casa, e por que não dizer, em sua cova".

A figura de Casaldáliga nos recorda as grandes testemunhas da fé nos primórdios do Cristianismo. Outrora os bispos eram a um tempo pastores, teólogos, profetas, poetas e santos. Depois, quando começou a aventura cultural da Igreja dentro da era constantiniana, se introduziu a divisão eclesiástica do trabalho: por um lado o pastor, por outro o teólogo, por outro o profeta, por outro o poeta e por outro o santo. Raramente tudo se reunia numa só pessoa.

A grandeza de Pedro reside no fato de unificar em sua pessoa o pastor, o profeta, o poeta e o santo. Ele é inteiriço como um tronco fincado firme no chão. Nele não há eufemismos, dobras e luscofusco. O que é, também o mostra. O que pensa, também o diz. E o que diz, o diz alto e claramente.

O bispo-pastor

O bispo é fundamentalmente um pastor que conhece suas ovelhas - para usar uma expressão evangélica - e que se prontifica a dar a vida por elas. No convite-recordação de sua sagração episcopal colocou estes dizeres que definem o sentido de seu ministério: "Tua mitra será um chapéu de palha; o sol e o clarão da lua; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho. e a confiança de teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à nova aliança do Deus libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da esperança e a liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outros recursos que o serviço do amor".

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Sua pastoral é eminentemente de encarnação: assumir toda a realidade com todas as suas contradições e enchê-la de sementes de libertação. Para Casaldáliga o Cristianismo não é primeiramente uma religião — um campo religioso com seus símbolos, ritos, dogmas e prescrições — e como tal um segmento da realidade, mas é um processo de incarnação na totalidade da realidade, porque tudo interessa ao Reino de Deus. Desde o dia em Deus penetrou em nossa realidade por Jesus Cristo, todas as coisas são destinadas a constituírem o corpo do Senhor. Rompeu-se o véu do templo; não há mais um santo dos santos à parte; tudo deve ser resgatado e feito santo, também a política, também a luta pela terra, também a saúde, também a defesa dos direitos dos pisoteados, também a educação, também o poder como instrumento da justiça. Todas estas realidades pertencem ao pastoreio do bispo. Somente neste processo incarnatório e libertador, a religião recupera sua alta significação simbólica: nela se celebra a gesta salvadora de Deus na história do povo, se nomeia o nome Santo de Deus, se adora o Mistério que penetra e circµnda nossa existência, se guarda viva a memóriaória subversiva da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo e se fortalece o propósito de seguir e imitar as práticas do Senhor.

É esta compreensão do Cristianismo que nos faz entender a pastoral de Pedro Casaldáliga tão comprometida com a realidade conflitante dos 150.000 Km2 que compõem a Prelazia de São Félix.

Bispo-profeta

Ninguém é profeta porque quer. É feito profeta pelo protesto e pela esperança face às contradições da realidade social. Foi assim com os profetas pagãos do terceiro milênio antes de Cristo em Mari, com os profetas do Antigo Testamento e com os profetas de hoje, como Pedro Casaldáliga. Para entender o profeta devemos entender as duas fidelidades que todo profeta vive: fidelidade a Deus e fidelidade ao povo. Ele fala em nome de Deus e da consciência que recolhe a Sua voz. Em nome destas instâncias supremas, ele cobra coragem para se levantar, sozinho, erguer a voz, apontar o dedo em riste e gritar: Nao te é permitido! Não oprimas teu irmão! E assim ousa afrontar-se com os poderes deste éon, seja uma poderosa empresa de colonização como a Codeara ou a Bordon S/A Agropecuária da Amazônia, seja um co-irmão do próprio Episcopado, envolvido num

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profundo equívoco, cheio de boa-vontade mas sem nenhum espírito crítico ou o próprio Estado autoritário, usurpador de todos os direitos da Nação.

Além desta fidelidade a Deus o profeta vive a fidelidade ao povo. Ele sabe de seu clamor pela justiça que sobe das profundezas da terra, comparte de sua paixão dolorosa, identifica-se com sua sacrificação no altar do deus-Mamona. Dom Pedro soube emprestar sua voz aos silenciados, aos expulsos de suas terras, aos índios dizimados, aos peões caçados na mata como feras. Raramente em nossa terra se ouviu uma voz profética mais contundente, cortante e tonitruante como aquela de Dom Pedro. O eco de sua denúncia se ouviu até os confins da terra, para além de São Félix, de Brasília, do Vaticano, de Madrid.

Há os que se escandalizam com seu radicalismo. Deveriam antes escandalizar-se com o radicalismo a que chegou a situação real da opressão a ponto do próprio Pedro, pasmado, notar: ''Muitas mortes matadas dentro da região da Prelazia. Não sei como enfrentar este doloroso mistério; se mata exaperadamente … Desde a morte do Pe. João Bosco e por outras referências e acontecimentos, me sinto cada dia mais próximo da esperada hora".

A radicalidade da violência simbólica reproduz, palidamente, a radicalidade da violência real. Para entender o grito profético de Pedro é preciso ouvir o clamor dos oprimidos, ver a lágrima cair dos olhos cansados de sofrer, escutar o raspar das panelas vazias, sentir o medo da morte rondeira. É preciso conservar o mínimo de humanidade e de solidariedade para com os humilhados e ofendidos desta terra. Se não houver este mínimo, nada se poderá fazer senão dar o supremo testemunho de todos os profetas: oferecer a vida pela verdade que é mais forte que a morte. E Pedro muitas vezes ofereceu, jovialmente, a vida aos irmãos e a seu Senhor: "Eu morrerei de pé como as árvores (me matarão de pé)… De golpe, com a morte, se fará verdade minha vida".

Bispo-poeta

Dom Pedro Casaldáliga é um poeta de profunda inspiração, poeta da denúncia com força elementar e do lirismo terno como os olhos das vacas que ele tanto aprecia. Disse-o com acerto Alceu Amoroso Lima no Jornal do Brasil: "Não é um poeta de salão mas do ar livre. Não é apenas um cultivador de acrobacias assimétricas

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ou um bardo edificante". Nem um bispo distanciado entre quatro paredes. Mas um cantor e curador do povo humilde e participante de suas misérias e esperanças, como o foi o Irmão José de Anchieta de nossa aurora nacional".

O próprio Pedro confessou a seu amigo Teófilo Cabestrero: "Penso, às vezes, que se sou algo, então sou isso, poeta. Mesmo como religioso, como sacerdote e como bispo, sou poeta. Muitas coisas que intuo, sinto, falo ou faço é porque sou poeta… Esta sensibilidade, esta intuição, uma atitude de ternura, ante a natureza, ante as coisas todas, ante os homens; diante da dor, da fraqueza, da pequenês, nas horas e nas circunstâncias exultantes também… Por ela expresso minha fé e também meu ministério".

A fé revela o Sublime do homem. Foi sempre na obra poética que ela encontrou sua expressão sublime. As poesias Terra nossa, liberdade, Romance da morte e Senhor Jesus, em inquérito por subversão alcançam o sublime da inspiração e da forma. Serão marcos imorredouros destes tempos maus.

Bispo-santo

Não queremos canonizar em vida a Pedro Casaldáliga. Queremos apenas testemunhar um novo tipo de santidade que se desenha em sua vida e em suas práticas. Estamos acostumados a ouvir: aquele bispo é um santo! Por quê? Porque é piedoso, fiel aos seus deveres ministeriais, entregue a longas horas de oração e meditação e bondoso para com todos os homens. É um tipo de santidade nos quadros do sistema da Igreja e consagrado pelo ethos da tradição histórica cristã. Os tempos modernos viram emergir um outro tipo de santidade: contemplativo na ação, comprometido até à morte com a justiça, com a dignidade aviltada dos pobres e com o processo de libertação dos oprimidos. É uma santidade que se constrói no esforço de seguir a mensagem e as práticas do Jesus histórico, que não morreu por um equívoco, mas em conseqüência de um comprometimento com a Causa de Deus identificada com a causa da justiça, da fraternidade e do amor entre os homens. Trata-se de uma santidade política e não privatizante e intimissta. Precisamos recuperar o sentido originário de política já dado por Aristóteles; não política como mera técnica do poder (ték ne), mas política como virtude (areté) no sentido da busca da Justiça, do bem comum, das relações fraternas entre os homens, e também da denúncia dos abusos de poder e desmascaramen-

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to das imposturas das classes dominantes. Política neste sentido é mediação da justiça social; como ensinava Paulo VI na Ocotogesima Adveniens "uma maneira exigente… de viver o compromisso cristão, ao serviço dos outros" (n. 46). Esta santidade é difícil porque exige conviver com os conflitos, suportar as tensões, superar, continuamente, os instintos de vingança, jamais conceder ao desânimo e à desesperança, sempre crer, sempre renunciar à violência, sempre aguentar firme, sen1pre esperar no futuro da fraternidade, contra toda a esperança e o peso brutal dos fatos contrários.

Encontramos esta santidade em Pedro, que transparece na serenidade de sua figura e na capacidade ilimitada de ouvir, de dialogar, de sugerir, de sempre de novo recomeçar, de nunca negociar com a verdade contra todos os comodismos e facilidades oferecidas pelo sistema da Igreja ou do Estado. Tenta seguir um ideal que ele mesmo traçou de pobreza evangélica:

"Não ter nada.
Não levar nada.
Não poder nada.
Não pedir nada.
E, de passada,
não matar nada;
não calar nada.

Somente o Evangelho, como uma faca afiada.
E o pranto e o riso na mirada.
E a mão extendida e apertada.
E a vida, a cavalo dada.
E este sol e estes rios, e esta terra comprada,
para testemunhas da revolução já estalada.
E mais nada!"

Pedro ajudou a dar credibilidade à fe cristã. É possível ser cristão e libertador, ser cristão e comprometido com a mudança qualitativa da sociedade; ser cristão e identificado com as dores e as esperanças dos oprimidos da terra, ser cristão, cidadão do Reino das promessas e cidadão da pátria terrena de todos os homens. Por isso lhe somos agradecidos.

Frei Leonardo Boff, O.F.M.
Petrópolis, festa de todos os santos, 1978.

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