- Azevedo, Carmen Lucia, Marcia Camargos & Vladimir Sacchetta. 1998. Um duende lobatiano. In Lobato, Monteiro. O Sacy Perêrê: resultado de um inquerito. Rio de Janeiro : Gráfica JB S.A.
O interesse de Monteiro Lobato pela figura do saci surgiu quando ele morava na fazenda do Buquira, na serra da Mantiqueira, interior de São Paulo, onde aprofundou o contato com a rica cultura do mundo rural, praticamente ignorada nos centros urbanos. Com reputação consolidada na imprensa como vigoroso escritor-publicista após a ampla repercussão de seus polêmicos artigos "Uma velha praga" e "Urupês", prosseguiu escrevendo sobre temas nacionais. O desenraizamento cultural do país preocupava Lobato, que em 1916 denunciava, na Revista do Brasil, a recorrente mania das elites de imitar Paris. No ano seguinte, sugere, nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo, que se incorporem elementos do folclore nos cursos do Liceu de Artes e Ofícios, instituição modeladora do gosto estético da época. Para Lobato, faunos, sátiras e bacantes poderiam ser facilmente substituídos por personagens nossos como o caipora, o boitatá, a Iara e, especialmente, o saci — ''satirozinho de grande pitoresco que ainda não penetrou nos domínios da arte, embora já se cristalizasse na alma popular, estilizado ao sabor da imaginativa popular".
A partir dessa proposta, as discussões ganham corpo e os leitores demonstram enorme interesse numa entidade que lhes povoara a infância. Lobato, então, amadurece a idéia de promover uma pesquisa para levantar o que restara, na memória das pessoas, do "insigne perneta". No dia 28 de janeiro de 1917, ele lança no "Estadinho", edição vespertina de O Estado de S. Paulo, sob o título de "Mitologia brasílica", uma série de artigos em que convida todos a colaborar com informações sobre aquele duende "genuinamente nacional", cuja denominação resultava da corruptela do tupi-guarani Çaa cy perereg. Procurando fixar características, conteúdo lendário, variantes e todos os aspectos exteriores e comportamentais em torno do saci, o inquérito utilizava uma técnica de coleta de dados até então inédita entre os estudiosos do folclore. Pioneiramente, recorria ao questionário como recurso de investigação, numa sondagem de amplitude nacional.
O resultado surpreendeu. Choveram cartas de Minas Gerais, do Estado do Rio e, sobretudo, de regiões paulistas. Se o estilo e a abordagem das respostas variavam, elas conservavam, em comum, a origem do mito, que emergia de relatos de ex-escravos empregados nas fazendas ou em pequenas propriedades agrícolas. Circunscrito à zona rural, o moleque, segundo os depoentes, gostava de dançar e praticar diabruras. Malicioso e zombeteiro, fazia antes travessuras que maldades, montando e disparando os cavalos à noite, chupando-lhes o sangue e embaraçando suas crinas. Era vivaz e inteligente, assobiava, guinchava, pulava e soltava uma gargalhada estridente que doía até a medula. Mas também gorava ninhadas, queimava balões, comia o piruá da pipoca, roubava espigas e quebrava os pés de milho, bebia o conteúdo de barris de vinho ou de refresco, deixava as porteiras abertas para que os animais fugissem e fumava o pito das pretas velhas. Brejeiro e cheio de artifícios, capturá-lo não consistia tarefa das mais fáceis, embora com sorte fosse possível, em dias de ventania, aprisioná-lo com uma peneira no centro de um redemoinho. Híbrido e mutante, peão e cavaleiro, com o passar do tempo o saci mudou a coloração da pele e foi perdendo os atributos demoníacos, como rabo e chifres, enquanto ganhava um vistoso gorro vermelho. Sua estirpe africana, enfatizada, permeava a maioria dos depoimentos.
"Ele era um negrinho muito magro, muito esperto, de uma perna só, do tamanho de um menino de doze anos, muito feio, banguela, olhos vivos, rindo sempre um riso velhaco de corretor de praça", atestava um. "Barba como a de um bode, negro como urubu, uma perna única apoiando o pé caprino, olhos grandes e vermelhos, boca sempre aberta num sorriso sarcástico…", completava outro. E, para acabar com a polêmica, apareceu, remetido pelo próprio saci, o testemunho definitivo que colocaria um ponto final nas dúvidas sobre as características físicas do dito-cujo. De autoria de Lobato, divertindo-se às custas dos sisudos intelectuais de plantão, o texto explicava que o saci era filho legítimo de cabocla e tinha duas pernas com os calcanhares para a frente, de modo que suas pegadas indicassem a direção inversa àquela por ele seguida.
Meses depois, o mesmo jornal abria um concurso conclamando artistas plásticos a desenvolverem trabalhos inspirados no saci. A boa receptividade a mais esta iniciativa, aliada ao sucesso da investigação antropológica, levariam Lobato a organizar os depoimentos em livro, ilustrado com fotos de algumas das obras apresentadas. Ressaltando acreditar tratar-se de produto de boa vendagem, explica ao amigo Godofredo Rangel, seu mais assíduo correspondente, que a publicação, com cerca de trezentas páginas e tiragem inicial de dois mil exemplares, sairia sob o pseudônimo de "Um Demonólogo Amador". E ironizava o fato de sua estréia literária ocorrer por meio de uma obra não-assinada, repleta de material de terceiros.
Autofinanciado por Monteiro Lobato, que colocou anúncios especialmente desenhados por Voltolino no início e no final do livro para cobrir parte dos gastos e viabilizar sua impressão na gráfica do jornal O Estado de S. Paulo, O Sacy-Perêrê: Resultado de um inquerito foi lançado no começo de 1918. Por essa ocasião, a guerra que se desenrolava na Europa atravessava uma de suas fases mais trágicas. Não é à toa que, no intróito do livro, Lobato esclarecia ter resolvido recuperar a imagem alegre do saci para servir de contraponto à "carniçaria" deflagrada quatro anos antes. Com esse resgate, o escritor questionava o conceito de civilização nos moldes franceses que a burguesia brasileira, impregnada do imaginário europeu, insistia em reproduzir. De quebra, demonstrava a necessidade de se aprofundar os estudos sobre nossas lendas, crendices e costumes para que pudéssemos conhecer mais sobre nós mesmos e alcançar a independência cultural, abandonando o velho hábito de "macaquear", herança de um passado colonial.
Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta (*)
(*) autores de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (Editora SENAC São Paulo 1997), obra ganhadora dos prêmios Jabuti e Livro do Ano, respectivamente nas categorias Ensaios e Biografia e Não ficção.




