A língua-geral em São Paulo (Holanda 1995)
  • Holanda, Sérgio Buarque de. 1995. A língua-geral em São Paulo. In Raízes do Brasil, 26a. edição, p. 122-133. São Paulo: Companhia das Letras.
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O assunto, que tem sido ultimamente objeto de algumas controvérsias, foi tratado pelo autor no Estado de S. Paulo de 11 e 18 de maio e 13 de junho de 1945, em artigos cujo texto se reproduz, a seguir, quase na íntegra.

Admite-se, em geral, sobretudo depois dos estudos de Teodoro Sampaio, que ao bandeirante, mais talvez do que ao indígena, se deve nossa extraordinária riqueza de topônimos de procedência tupi. Mas admite-se sem convicção muito arraigada, pois parece evidente que uma população "primitiva", ainda quando numerosa, tende inevitavelmente a aceitar os padrões de seus dominadores mais eficazes.

Não faltou, por isso mesmo, quem opusesse reservas a um dos argumentos invocados por Teodoro Sampaio, o de que os paulistas da era das bandeiras se valiam do idioma tupi em seu trato civil e doméstico, exatamente como os dos nossos dias se valem do português.

Esse argumento funda-se, no entanto, em testemunhos precisos e que deixam pouco lugar a hesitações, como o é o do padre Antônio Vieira, no célebre voto que proferiu acerca das dúvidas suscitadas pelos moradores de São Paulo em torno do espinhoso problema da administração do gentio. "É certo", sustenta o grande jesuíta, "que as famílias dos portuguezes e índios de São Paulo estão tão

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ligadas hoje humas ás outras, que as mulheres e os filhos se criam mystica e domesticamente, e a lingua que nas ditas familias se fala he a dos índios, e a portugueza a vão os meninos aprender à escola […]"1

Não se diga que tal afirmação, vinda de quem veio, pudesse ter sido uma invenção piedosa, destinada a abonar o parecer dos adversários da entrega do gentio a particulares e partidários do regime das aldeias, onde, no espiritual, pudessem os índios ser doutrinados e viver segundo a lei da Igreja. Era antes um escrúpulo e dificuldade, que tendia a estorvar o parecer de Vieira, pois "como desunir esta tão natural união", sem rematada crueldade para com os que "assim se criaram e há muitos anos vivem"?

Tentando precaver-se contra semelhante objeção, chega a admitir o jesuíta que se os índios ou índias tivessem realmente tamanho amor aos seus chamados senhores, que quisessem ficar com eles por espontânea vontade, então ficassem, sem outra qualquer obrigação além desse amor, que é o cativeiro mais doce e a liberdade mais livre.

Que Vieira, conhecendo apenas de informações o que se passava em São Paulo, tenha sido levado facilmente a repetir certas fábulas que, entre seus próprios companheiros de roupeta, correriam a respeito dos moradores da capitania sulina não é contudo improvável. Caberia, por conseguinte, ao lado do seu, coligir outros depoimentos contemporâneos sobre o assunto e verificar até onde possam eles ter sido expressão da verdade.

O empenho que mostraram constantemente os paulistas do século XVII em que fossem dadas as vigararias da capitania, de preferência a naturais dela, pode ser atribuído ao mesmo nativismo que iria explodir mais tarde na luta dos emboabas. Mas outro motivo plausível é apresentado mais de uma vez em favor de semelhante pretensão: o de que os religiosos procedentes de fora, desconhecendo inteiramente a língua da terra, se entendiam mal com os moradores.

É explícita, a propósito, uma exposição que, isso já em 1725, enviaram a el-rei os camaristas de São Paulo.2 E em 1698, ao solicitar de Sua Majestade que o provimento de párocos para as igrejas da repartição do Sul recaísse em religiosos conhecedores da língua-geral dos índios, o governador Artur de Sá e Meneses exprimia-se nos seguintes termos: "[ … ] a mayor parte daquella Gente se não explica em outro ydioma, e principalmente o sexo feminino e todos

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os servos, e desta falta se experimenta irreparavel perda, como hoje se ve em São Paulo como o nouo Vigario que veio provido naquella Igreja, o qual ha mister quem o interprete''.3

Que entre mulheres principalmente o uso da língua-geral tivesse caráter mais exclusivista, eis uma precisão importante, que o texto citado vem acrescentar às informações de Vieira. Mais estreitamente vinculada ao lar do que o homem, a mulher era aqui, como o tem sido em toda parte, o elemento estabilizador e conservador por excelência, o grande custódio da tradição doméstica. E a tradição que no caso particular mais vivaz se revela é precisamente a introduzida na sociedade dos primeiros conquistadores e colonos pelas cunhãs indígenas que com eles se misturaram.

Em favor da persistência de semelhante situação em São Paulo através de todo o século XVII deve ter agido, em grau apreciável, justamente o lugar preeminente que ali ocuparia muitas vezes o elemento feminino. Casos como o de uma Inês Monteiro, a famosa Matrona de Pedro Taques, que quase sem auxílio se esforçou por segurar a vida do filho e de toda a sua gente contra terríveis adversários, ajudam a fazer idéia de tal preeminência. Atraindo periodicamente para o sertão distante parte considerável da população masculina da capitania, o bandeirismo terá sido uma das causas indiretas do sistema quase matriarcal a que ficavam muitas vezes sujeitas as crianças antes da idade da doutrina e mesmo depois. Na rigorosa reclusão caseira, entre mulheres e serviçais, uns e outros igualmente ignorantes do idioma adventício, era o da terra que teria de constituir para elas o meio natural e mais ordinário de comunicação.

Num relatório escrito por volta de 1692 dizia o governador Antônio Pais de Sande das mulheres paulistas que eram "formosas e varonis, e he costume alli deixarem seus maridos á sua disposição o governo das casas e das fazendas". Linhas adiante acrescentava ainda que "os filhos primeiro sabem a lingua do gentio do que a materna".4 Isto é, a portuguesa.

Um século depois de Antônio Vieira, de Artur de Sá e Meneses, de Antônio Pais de Sande, condição exatamente idêntica à que, segundo seus depoimentos, teria prevalecido no São Paulo do último decênio seiscentista será observada por d. Félix de Azara em Curuguati, no Paraguai. Ali também as mulheres falavam só o guarani e os homens não se entendiam com elas em outra língua, posto que entre si usassem por vezes do castelhano. Essa forma de bilingüismo

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desaparecia, entretanto, em outras partes do Paraguai, onde todos, homens e mulheres, indiscriminadamente, só se entendiam em guarani, e apenas os mais cultos sabiam o espanhol. Deve-se notar, de passagem, que ao mesmo Azara não escaparam as coincidências entre o que lhe fora dado observar no Paraguai e o que se afirmava dos antigos paulistas. "Lo mismo", escreve, "ha succedido exatamente en la imensa provincia de San Pablo, donde los portugueses, habiendo olvidado su idioma, no hablan sino el guarani".5

Ao tempo em que redigia suas notas de viagem, essa particularidade, no que diz respeito a São Paulo, já pertencia ao passado, mas permaneceria viva na memória dos habitantes do Paraguai e do Prata castelhanos, terras tantas vezes ameaçadas e trilhadas pelos antigos bandeirantes.

Sobre os testemunhos acima citados pode dizer-se que precisamente seu caráter demasiado genérico permitiria atenuar, embora sem destruir de todo, a afirmação de que entre paulistas do século XVII fosse corrente o uso da língua-geral, mais corrente, em verdade, do que o do próprio português. Nada impede, com efeito, que esses testemunhos aludissem sobretudo às camadas mais humildes (e naturalmente as mais numerosas) do povo, onde a excessiva mistura e a convivência de índios quase impunham o manejo constante de seu idioma.

Que os paulistas das classes educadas e mais abastadas também fossem, por sua vez, muito versados na língua-geral do gentio, comparados aos filhos de outras capitanias, nada mais compreensível, dado seu gênero de vida. Aliás não é outra coisa o que um João de Laet, baseando-se, este certamente, em informações de segunda mão, dá a entender em sua história do Novo Mundo, publicada em 1640. Depois de referir-se ao idioma tupi, que no seu parecer é fácil, copioso e bem agradável, exclama o então diretor da Companhia das Índias Ocidentais: "Or les enfants des Portugais nés ou eslevés de jeunesse dans ces provinces, le sçavent comme le leur propre, principalement dans le gouvernement de St Vincent".6

Outros dados ajudam, no entanto, a melhor particularizar a situação a que se referem os já mencionados depoimentos. Um deles é o inventário de Brás Esteves Leme, publicado pelo Arquivo do Estado de São Paulo. Ao fazer-se o referido inventário, o juiz de órfãos precisou dar juramento a Álvaro Neto, prático na língua da terra,

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a fim de poder compreender as declarações de Luzia Esteves, filha do defunto, "por não saber falar bem a língua portuguesa".7

Cabe esclarecer que o juiz de órfãos era, neste caso, d. Francisco Rendon de Quebedo, morador novo em São Paulo, pois aqui chegara depois de 1630 e o inventário em questão data de 36. Isso explica como, embora residente na capitania, tivesse ele necessidade de intérprete para uma língua usual entre a população.

O exemplo de Luzia Esteves não será, contudo, dos mais convincentes, se considerarmos que, apesar de pertencer, pelo lado paterno, à gente principal da terra, era ela própria mamaluca de primeiro grau.

Mais importante, sem dúvida, para elucidar-se o assunto é o caso de Domingos Jorge Velho, o vencedor dos Palmares e desbravador do Piauí. Na ascendência do grande régulo parnaibano o elemento português predomina francamente, embora, para acompanhar a regra, não isento de mestiçagem com o gentio pois, se não falham os genealogistas, foi tetraneto, por um lado, da filha de Piquerobi e, por outro, da tapuia anônima de Pedro Afonso.

Não deixa, assim, de ser curioso que, tendo de tratar com o bispo de Pernambuco no sítio dos Palmares, em 1697, precisasse levar intérprete, "porque nem falar sabe", diz o bispo. E ajunta: "nem se diferença do mais barbaro Tapuia mais que em dizer que he Christão, e não obstante o haver se casado de pouco lhe assistem sete Indias Concubinas, e daqui se pode inferir como procede no mais".8

Um estorvo sério à plena aceitação desse depoimento estaria no fato de se conhecerem, escritos e firmados de próprio punho por Domingos Jorge, diversos documentos onde se denuncia certo atilamento intelectual que as linhas citadas não permitem supor. Leiam-se, por exemplo, no mesmo volume onde vêm reproduzidas as declarações do bispo de Pernambuco, as palavras com que o famoso caudilho procura escusar e até exaltar o comportamento dos sertanistas preadores de índios, em face das acres censuras que tantas vezes lhes endereçaram os padres da Companhia.

Primeiramente, observa, as tropas de paulistas não são de gente matriculada nos livros de Sua Majestade, nem obrigada por soldo ou pão de munição. Não vão a cativar, mas antes a reduzir ao conhecimento da civil e urbana sociedade um gentio brabo e comedor de carne humana. E depois, se esses índios ferozes são postos a servir nas lavras e lavouras, não entra aqui nenhuma injustiça clamo-

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rosa, "pois he para os sustentarmos a eles e aos seus filhos, como a nós e aos nossos", o que, bem longe de significar cativeiro, constitui para aqueles infelizes inestimável serviço, pois aprendem a arrotear a terra, a plantar, a colher, enfim a trabalhar para o sustento próprio, coisa que, antes de amestrados pelos brancos, não sabiam fazer.

É esse, segundo seu critério, o único meio racional de se fazer com que cheguem os índios a receber da luz de Deus e dos mistérios da sagrada religião católica, o que baste para sua salvação eterna, pois, observa, "em vão trabalha quem os quer fazer anjos antes de os fazer homens".

Deixando de parte toda aquela rústica e especiosa pedagogia com que se procura disfarçar o serviço forçado do gentio em benefício de senhores particulares, é impossível desprezar a sentença cabal que aqui se lavra contra o sistema dos padres. Anjos, não homens, é o que pretendem realmente fabricar os inacianos em suas aldeias, sem conseguir, em regra, nem uma coisa, nem outra. Ainda nos dias de hoje é essa, sem dúvida, a mais ponderável crítica que se poderá fazer ao regime das velhas missões jesuíticas.

Permanece intato, todavia, o problema de saber-se se o "tapuia bárbaro", que nem falar sabia - entenda-se: falar português -, terá sido efetivamente autor de tão sutis raciocínios. Restaria, em verdade, o recurso de admitir que, sendo porventura sua a letra com que foram redigidos os escritos, não o seriam as palavras e, ainda menos, as idéias.

Seja como for, não cabe repelir de todo algumas das afirmações do bispo pernambucano, apesar de sua rancorosa aversão ao bandeirante, que se denuncia da primeira à última linha. No que diz respeito ao escasso conhecimento da língua portuguesa por parte de Domingos Jorge, a carta constitui mais um depoimento, entre muitos outros semelhantes, sobre os paulistas do século XVII. Depoimento que, neste caso especial, pode merecer reparos e reservas, mas que não é lícito pôr de parte.

Além desses testemunhos explícitos, quase todos do século XVII, existe uma circunstância que deve merecer aqui nossa atenção. Se procedermos a um rigoroso exame das alcunhas tão freqüentes na antiga São Paulo verificaremos que, justamente, por essa época, quase todas são de procedência indígena. Assim é que Manuel Dias da Silva era conhecido por "Bixira"; Domingos Leme da Silva era o

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"Botuca"; Gaspar de Godói Moreira, o "Tavaimana"; Francisco Dias da Siqueira, o "Apuçá"; Gaspar Vaz da Cunha, o "Jaguaretê"; Francisco Ramalho, o "Tamarutaca"; Antônio Rodrigues de Góis, ou da Silva, o "Tripoí". Segundo versão nada inverossímil, o próprio Bartolomeu Bueno deveu aos seus conterrâneos, não aos índios goiás, que por sinal nem falavam a língua-geral, a alcunha tupi de Anhangüera, provavelmente de ter um olho furado ou estragado. O episódio do fogo lançado a um vaso de aguardente, que anda associado à sua pessoa, Pedro Taques atribuiu-o a outro sertanista, Francisco Pires Ribeiro.

No mesmo século XVII as alcunhas de pura origem portuguesa é que constituem raridade. Um dos poucos exemplos que se podem mencionar é a de "Perna-de-Pau" atribuída a Jerônimo Ribeiro, que morreu em 1693. Não faltam, ao contrário, casos em que nomes ou apelidos de genuína procedência lusa recebem o sufixo aumentativo do tupi, como a espelhar-se, num consórcio às vezes pitoresco, de línguas tão dessemelhantes, a mistura assídua de duas raças e duas culturas. É por esse processo que Mecia Fernandes, a mulher de Salvador Pires, se transforma em Meciuçu. E Pedro Vaz de Barros passa a ser Pedro Vaz Guaçu. Num manuscrito existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro lê-se que ao governador Antônio da Silva Caldeira Pimentel puseram os paulistas o cognome de Casacuçu, porque trazia constantemente uma casaca comprida.9 Sinal, talvez, de que ainda em pleno Setecentos persistiria, ao menos em determinadas camadas do povo, o uso da chamada língua da terra. E não é um exemplo isolado. Salvador de Oliveira Leme, natural de Itu e alcunhado o "Sarutaiá", só vem a morrer em 1802.

Trata-se, porém, já agora de casos isolados, que escapam à regra geral e podem ocorrer a qualquer tempo. O que de fato se verifica, à medida que nos distanciamos do século XVII, é a freqüência cada vez maior e mais exclusivista de alcunhas portuguesas como as de "Via-Sacra", "Ruivo", "Orador", "Cabeça do Brasil", e esta, de sabor ciceroniano: "Pai da Pátria". As de origem tupi, predominantes na era seiscentista, é que vão diminuindo, até desaparecerem praticamente por completo. Não parece de todo fortuita a coincidência cronológica desse fato, que sugere infiltração maior e progressiva do sangue reinol na população da capitania, com os grandes descobrimentos do ouro das Gerais e o declínio quase concomitante das bandeiras de caça ao índio.

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Em que época, aproximadamente, principia a desaparecer, entre moradores do planalto paulista, o uso corrente da língua tupi? Os textos até aqui invocados para indicar o predomínio de tal idioma procedem, em sua grande maioria, do século XVII, conforme se viu, e precisamente do último decênio do século XVII. De 1692 ou 93, pouco mais ou menos, é o relatório de Antônio Pais de Sande. O famoso voto do padre Antônio Vieira sobre as dúvidas dos moradores da capitania traz a data de 1694. De 1697 é o depoimento do bispo de Pernambuco acerca de Domingos Jorge Velho. 1693 é o ano da carta do governador Artur de Sá e Meneses, recomendando que recaísse em sacerdotes práticos na língua do gentio o provimento de párocos em São Paulo, assim como em todo o território da repartição do Sul.

Nos primeiros tempos da era setecentista ainda aparecem, é certo que menos numerosas, referências precisas ao mesmo fato. Em 1709, segundo documento manuscrito que me acaba de ser amavelmente comunicado pelo mestre Afonso de Taunay, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho teve ocasião de surpreender uma conversa entre cabos de forças paulistas acampadas perto de Guaratinguetá, cujo teor, desprimoroso para ele e sua gente, o governador emboaba só conseguiu perceber devido a ter sido anteriormente capitão-general do Maranhão, terra onde também era corrente o emprego do tupi. Ou talvez devido à presença, em sua escolta, de algum padre catequista habituado ao trato do gentio.

A textos semelhantes junte-se ainda o significativo testemunho do biógrafo, quase hagiógrafo, do padre Belchior de Pontes. Este, segundo nos afiança Manuel da Fonseca, dominava perfeitamente o "idioma que aquela gentilidade professava, porque era, naquelles tempos, comum a toda a Comarca".10 Tendo-se em consideração que Belchior de Pontes nasceu no ano de 1644, isto quer dizer que a língua do gentio seria usual em toda a capitania pela segunda metade do século XVII. Já não o era em meados do seguinte, pois o padre Manuel da Fonseca se refere ao fato como coisa passada. De modo que o processo de integração efetiva da gente paulista no mundo da língua portuguesa pode dizer-se que ocorreu, com todas as probabilidades, durante a primeira metade do século XVIII.

E é possível que, mesmo nessa primeira metade e até mais tarde, não se tivesse completado inteiramente em certos lugares, ou entre algumas famílias mais estremes de contato com novas levas de

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europeus. Assim se explica como Hércules Florence, escrevendo em 1828, dissesse, no diário da expedição Langsdorff, que as senhoras paulistas, sessenta anos antes — isto é, pelo ano de 1780 —, conversavam naturalmente na língua-geral brasílica, que era a da amizade e a da intimidade doméstica. "No Paraguai", acrescentava, "é comum a todas as classes, mas (como outrora em São Paulo) só empregada em família, pois com estranhos se fala espanhol."11

Observação que se ajusta à de d. Felix de Azara, já citada, e que ainda em nossos dias pode ser verificada não apenas na República do Paraguai como na província argentina de Corrientes e em partes do sul do nosso Mato Grosso. Na província de São Paulo, onde chegou no ano de 1825, o próprio Florence pudera ouvir ainda a língua-geral da boca de alguns velhos. Não seria para admirar se isso se desse durante sua demora de mais de um semestre em Porto Feliz, distrito onde fora numerosa a mão-de-obra indígena e onde, segundo se lê nas Reminiscências do velho Ricardo Gumbleton Daunt, em princípios do século passado "de portas adentro não se falava senão guarani".12

Nos lugares onde escasseavam índios administrados, e era o caso, por exemplo, de Campinas, o português dominava sem contraste. Mesmo em Campinas, porém, havia por aquele tempo quem ainda soubesse falar correntemente o tupi. Gumbleton Daunt, fundando-se em tradição oral, informa que um genro de Barreto Leme, Sebastião de Sousa Pais, era "profundo conhecedor dessa língua". Poderia acrescentar que, tendo nascido bem antes de 1750, posto que morresse no século seguinte, já centenário, segundo ainda reza a tradição, Sousa Pais era ituano de origem e ascendência, como talvez a maioria dos principais moradores de Campinas. De terra, por conseguinte, onde tinha sido considerável o número de índios administrados durante grande parte do Setecentos.

A utilização em larga escala de tais índios nos misteres caseiros e na lavoura, enquanto não se generalizava a importação de escravos pretos, deve atribuir-se à menor docilidade com que, em algumas zonas rurais, os habitantes cederam ao prestígio, já então sempre expansivo, da língua portuguesa. Ainda em princípio do século passado, d. Juana Furquim de Campos, filha de português, não falava sem deixar escapar numerosas palavras do antigo idioma da terra.

E isso vinha, segundo informa Francisco de Assis Vieira Bueno,

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da circunstância de seu pai, estabelecido em Mogi-Guaçu, ter tido ali grande "escravatura indígena por ele domesticada".13 Note-se que essa influência da língua-geral no vocabulário, na prosódia e até nos usos sintáxicos de nossa população rural não deixava de exercer-se ainda quando os indígenas utilizados fossem estranhos à grande família tupi-guarani: o caso dos bororos e sobretudo o dos parecis, que no São Paulo do século XVIII tiveram papel em tudo comparável ao dos carijós na era seiscentista, a era por excelência das bandeiras. É que, domesticados e catequizados de ordinário na língua-geral da costa, não se entendiam com os senhores em outro idioma.

Sabemos que a expansão bandeirante deveu seu impulso inicial sobretudo à carência, em São Paulo, de braços para a lavoura ou antes à falta de recursos econômicos que permitissem à maioria dos lavradores socorrer-se da mão-de-obra africana. Falta de recursos que provinha, por sua vez, da falta de comunicações fáceis ou rápidas dos centros produtores mais férteis, se não mais extensos, situados no planalto, com os grandes mercados consumidores de além-mar.

Ao oposto do que sucedeu, por exemplo, no Nordeste, as terras apropriadas para a lavoura do açúcar ficavam, em São Paulo, a apreciável distância do litoral, nos lugares de serra acima - pois a exígua faixa litorânea, procurada a princípio pelo europeu, já estava em parte gasta e imprestável para o cultivo antes de terminado o século XVI. O transporte de produtos da lavoura através das escarpas ásperas da Paranapiacaba representaria sacríficio quase sempre penoso e raramente compensador.

Para vencer tamanhas contrariedades impunha-se a caça ao índio. As grandes entradas e os descimentos tinham aqui objetivo bem definido: assegurar a mesma espécie de sedentarismo que os barões açucareiros do Norte alcançavam sem precisar mover o pé dos seus engenhos. Por estranho que pareça, a maior mobilidade, o dinamismo, da gente paulista, ocorre, nesse caso, precisamente em função do mesmo ideal de permanência e estabilidade que, em outras terras, pudera realizar-se com pouco esforço desde os primeiros tempos da colonização.

Mas se é verdade que, sem o índio, os portugueses não poderiam viver no planalto, com ele não poderiam sobreviver em estado puro. Em outras palavras, teriam de renunciar a muitos dos seus há-

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bitos hereditários, de suas formas de vida e de convívio, de suas técnicas, de suas aspirações e, o que é bem mais significativo, de sua linguagem. E foi, em realidade, o que ocorreu.

O que ganharam ao cabo, e por obra dos seus descendentes mestiços, foi todo um mundo opulento e vasto, galardão insuspeitado ao tempo do Tratado de Tordesilhas. O império colonial lusitano foi descrito pelo historiador R. H. Tawney como "pouco mais do que uma linha de fortalezas e feitorias de 10 mil milhas de comprido".14 O que seria absolutamente exato se se tratasse apenas do Império português da era quinhentista, era em que, mesmo no Brasil, andavam os colonos arranhando as praias como caranguejos. Mas já no século XVIII a situação mudará de figura, e as fontes de vida do Brasil, do próprio Portugal metropolitano, se transferem para o sertão remoto que as bandeiras desbravaram. E não será talvez por mera coincidência se o primeiro passo definitivo para a travessia e exploração do continente africano foi dado naquele século por um filho de São Paulo e neto de mamalucos, Francisco José de Lacerda e Almeida. Tão memorável tentativa foi a sua, que passados muitos decênios ainda se conservava na lembrança dos pretos selvagens, conforme o atestou Livingstone em seu diário.

No trabalho monumental que escreveu sobre o caráter do descobrimento e conquista da América pelos europeus, Georg Friederici teve estas palavras acerca da ação das bandeiras: "Os descobridores, exploradores, conquistadores do interior do Brasil não foram os portugueses, mas os brasileiros de puro sangue branco e muito especialmente brasileiros mestiços, mamalucos. E também, unidos a eles, os primitivos indígenas da terra. Todo o vasto sertão do Brasil foi descoberto e revelado à Europa, não por europeus, mas por americanos".15

Não penso em tudo com o etnólogo e historiador alemão onde parece diminuir por sistema o significado da obra portuguesa nos descobrimentos e conquistas, contrastando-a com a de outros povos. Acredito mesmo que, na capacidade para amoldar-se a todos os meios, em prejuízo, muitas vezes, de suas próprias características raciais e culturais, revelou o português melhores aptidões de colonizador do que os demais povos, porventura mais inflexivelmente aferrados às peculiaridades formadas no Velho Mundo. E não hesitaria mesmo em subscrever pontos de vista como o recentemente sustentado pelo sr. Júlio de Mesquita Filho, de que o movimento das ban-

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deiras se enquadra, em substância, na obra realizada pelos filhos de Portugal na África, na Ásia, e na América, desde os tempos do infante d. Henrique e de Sagres.16 Mas eu o subscreveria com esta reserva importante: a de que os portugueses precisaram anular-se durante longo tempo para afinal vencerem. Como o grão de trigo dos Evangelhos, o qual há de primeiramente morrer para poder crescer e dar muitos frutos.

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