Prefácio, por Darcy Ribeiro (in Gomes 1988)

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PREFÁCIO

Afinal, um livro sobre os índios bom de ler: honesto, sábio, leal. Sim, estas são as qualidades distintivas desse texto de Mercio Pereira Gomes. Ele aqui dá conta da situação existencial dos índios trinta anos depois do meu balanço em Os Índios e a Civilização.

Quando procedi àquela avaliação, a expectativa da UNESCO, que encomendou a pesquisa, era mostrar ao mundo o caminho pelo qual os brasileiros estavam incorporando os índios à civilização como parte distinguível da sociedade nacional. Demonstrei que nada disso sucedia. Os índios vinham e estavam sendo exterminados. Cento e quarenta e três povos indígenas sobreviviam, é verdade (mas oitenta e sete haviam desaparecido entre 1900 e 1957), graças ao vigor extraordinário de sua identificação étnica que lhes conferia uma resistência espantosa. Só o alcançaram, porém, a custo de profundas transformações culturais, uma vez que grande parte das suas formas de fazer, de sentir e de conviver se tornavam inviáveis ao contato com a civilização.

Sobreviviam, assim, cada vez menos "selvagens", menos "exóticos", porque cada vez mais incorporados à rede de produção e de consumo. Por dez anos, andei exaustivamente por todo o país e não encontrei em lugar nenhum qualquer grupo de ex-índios confundíveis com os caboclos. Quaisquer que fossem as condições que enfrentassem, por mais que elas lhes fossem adversas, ainda mesmo quando profundamente mestiçados, com negros e com brancos, permaneciam índios.

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Foi assim que eu me deparei com eles: seja sob a proteção oficial do Estado, seja sob o amparo missionário, seja lutando frente a frente com o contexto civilizatório que os sitiava, todos eram e permaneciam índios. Vale dizer, viam-se a si mesmos como uma comunidade humana original, diferente da neobrasileira.

A sobrevivência desses índios residia, precisamente, na sua aparente incapacidade para se desfazerem na sociedade nacional. Isto colocava uma questão crucial que ainda vibra, desafiando a Antropologia brasileira: como é que se constituiu o povo brasileiro, se não foi pela assimilação progressiva de grupos indígenas? Vai ser necessário aprofundar muito mais o nosso conhecimento sobre o papel do convívio dos índios com a civilização, debaixo das opressões do escravismo, e sobre as condições em que mulheres apresadas eram prenhadas para parir filhos que não se identificavam com a etnia materna e que eram rechaçados pela paterna. Esses filhos de ninguém é que, ao se avolumarem, iam constituindo uma terceira camada de gente, nem nativa nem européia, que seriam os primeiros brasileiros. Eis como se deu a nossa formação demográfica inicial. Só pela opressão individualizada de cada índio desgarrado de seu povo os índios deixam de ser índio. No processo histórico social, tal como ele se dá fora do apresamento, o que de fato ocorre não é o trânsito do índio ao brasileiro, como se pensava; mas o do índio isolado ao índio integrado, ou seja, aquilo que eu chamei de transfiguração étnica.

Já naqueles anos era visível que alguns grupos indígenas estavam crescendo demograficamente, e que a tendência era que, no futuro, viessem a existir mais índios, não havendo a hipótese de que fossem liquidados. Prevaleciam, porém, no conjunto, condições tão terríveis de compressão sobre os índios, que maior era o número dos que se viam exterminados do que aqueles que conseguiam refazer o seu montante populacional. Passadas essas três décadas, Mercio nos mostra agora o fim do declínio demográfico dos povos indígenas, anunciando, com toda clareza, que vai haver mesmo mais índios no futuro do que no passado imediato.

A praga que mais devastou os povos indígenas, desde o começo dos nossos séculos, foram as pestes européias de extremada virulência que grassavam de tribo a tribo, em cadeias de

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contaminação generalizada. Epidemias como as de varíola, sarampo, catapora, difteria, gripe, coqueluche, tuberculose e outras. Esse fator de morte se reduziu sensivelmente porque na própria sociedade nacional essas ondas epidêmicas também desapareceram.

Outra praga, o genocídio, vinha diminuindo de freqüência, desde os tempos de Rondon. Ela diminuiu, também sensivelmente, nessas últimas três décadas, mas continua assassinando líderes indígenas, e os assassinos permanecem sempre impunes, o que demonstra a conivência da sociedade nacional com os massacradores de índios.

A terceira peste, que é o extermínio cultural, o etnocídio, induzido tanto pela própria burocracia oficial protecionista, como pela ação missionária, também declinou em seu poder destrutivo. Durante séculos e mesmo nas décadas primeiras do século XX, tremenda foi a opressão psicológica exercida sobre os índios pela desmoralização de suas crenças e pela indução da idéia de sua inferioridade, o que conduzia ao alcoolismo, à preguiça e à anomia.

O fim desse fator de extermínio se deve, de um lado, à mudança de atitude das missões religiosas, principalmente das católicas, que passaram a avaliar, para tentar evitar, os danos terríveis que o etnocídio por elas provocado causavam aos povos que pretendiam proteger a partir de uma ação em que o missionário se definia como agente civilizador. Esta era a face mais hipócrita da civilização: salvar as almas dos índios, facilitando o extermínio dos seus corpos e a espoliação de suas terras. Soma-se a essa forma de opressão a exercida pelo Estado, representado pela burocracia oficial, com o paternalismo amoral do funcionário que se fazia tratar como o "paizinho protetor".

O fato decisivo, entretanto, foi a resistência dos próprios índios que inviabilizou essa forma de etnocídio ao rechaçar o fanatismo missionário e o paternalismo burocrático, impondo respeito às suas próprias lideranças.

Mercio valoriza com muita justeza o papel relevante representado pela opinião pública nacional e internacional. Em muitas circunstâncias, nessas tantas décadas em que tenho lutado pela causa indígena, eu senti que só ganhando a opinião pública, através dos órgãos de comunicação, se conseguia salvar um grupo indígena de uma extorsão ou de um extermínio. É exem-

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plar o caso do projeto de emancipação indígena, no governo Geisel, que, se aprovado, teria entregue todos os grupos indígenas ao arbítrio funcionário, dando aos burocratas o direito de declarar que uma tribo estava emancipada — na prática, abandonada a sua sorte. Foi a reação levantada na opinião pública nacional e internacional que paralisou a vontade genocida daquele governante.

Chamou a atenção, também, para um fator positivo, surgido recentemente, que é o pendor preservacionista de caráter ecológico, que passou a considerar as comunidades indígenas como faces raras do fenômeno humano que têm, também, o direito de ser e de se expressar.

Por tudo isso louvo este livro, com a alegria de ver que, afinal, temos um texto que pode servir de base ao debate sobre a questão indígena, tal como ela se apresenta, hoje, aos olhos dos próprios índios. Vale dizer, tal como se trava sua luta contra os genocidas e os etnocidas, agora não mais sob a égide do missionário ou do protetor, mas sob o mando do próprio movimento índio.

É de assinalar aqui que este índio novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias. O seu símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios, como se fosse um ser detestável. É profundamente lamentável que ate a imprensa mais respeitável do país, a exemplo do Jornal do Brasil, tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemátita de desinformação contra o Deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da sua tradição jornalística. Essa gente, apodrecida no preconceito, ignora que Juruna surge à luz como um herói do seu povo. Graças à mobilização que ele fez de todos os Xavantes e a declaração de guerra que impôs a sociedade brasileira, ele recuperou para o seu povo mais da metade do território tribal, roubado com a conivência de funcionários da FUNAI. Como esquecer as célebres reuniões do Conselho de Segurança Nacional onde se colocava em discussão se se devia mandar tropas e canhões acabar com os Xavantes, a moda americana, ou se era mais ajuizado mandar demarcar as terras que lhes haviam sido furtadas.

Ao meu juízo, Mário Juruna pode ser considerado um dos melhores, senão o melhor deputado da legislatura passada, se eles se julgam por sua eficácia na defesa daqueles que se propõem representar. Muitas vezes sua ação pareceu ridícula e foi propositadamente deformada na imprensa. Mas é de notar que

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suas posturas intempestivas se realizavam sempre a partir de uma posição ética, tal como ocorreu quando provou que Maluf subornava deputados.

Irritação ainda maior provoca em outros setores o índio que apela para os mecanismos e linguagens do sistema capitalista para sobreviver no contexto mercantil em que está posto. Índios cobrando para serem filmados? Índios querendo royalties sobre minérios extraídos do seu território? Índios arrendando castanhais? Índios cobrando aluguel de pastos ou de terras agrícolas? Tudo isso parece horrível, tanto para os bobocas, por sua ingenuidade, que só admitem o índio como o selvagem ingênuo, quanto para os sabidos, que preferem negociar com funcionários ladravazes do que com as lideranças das comunidades indígenas.

Em seu diagnóstico pioneiro dessas situações novas, Mercio sempre olha os índios como gente igual a gente, merecedora de respeito, capaz de raciocínio lúcido, gente necessitada de apoio na luta por seus direitos, desde sempre expressos da forma mais clara em toda a legislação nacional, mas desde sempre sistematicamente espoliados.

Adotando a perspectiva de Mercio, começaremos a ver os índios como gente autônoma, cada vez mais precavida, que não carece, nem requer tutelas oficiais ou paternalismos missionários. Este livro assinala um outro fato novo e relevante, que é o ressurgimento de uma Antropologia socialmente responsável ante os grupos que estuda. Ela ressurge na figura de antropólogos que me lembram Curt Nimuendaju e Eduardo Galvão, deixando para trás a atitude boquiaberta, novidadeira e moralmente irresponsável, que floresceu nos estercais da ditadura.

A sobrevivência dos índios, sua permanência histórica como parte constitutiva e essencial do Brasil, provoca desafiadoramente a necessidade de se criar uma nova Antropología que responda não somente pelo presente, mas que também tome coragem de ousar pensar para o futuro. Todo o esforço antropológico brasileiro, até agora, vinha sendo no sentido de explicar quem são os índios e o porquê de tantos se extinguirem e uma porcentagem mínima sobreviver. Esta nova geração de antropólogos terá que se aliar aos índios para projetá-los no futuro e ajudá-los, por todos os meios, inclusive pelo pensamento, pela inteligência, a encontrar o seu lugar justo numa nação justa e digna.

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