- Rodriguez, Aryon Dall'Igna. 1997. Apresentação. In Giraldin, Odair. 1997. Cayapó e Panará : Luta e sobrevivência de um povo jê no Brasil central, p.15-16. Campinas: Editora da Unicamp.
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APRESENTAÇÃO
No Brasil é quase completamente desconhecida a história dos povos indígenas que, deixando-se dominar pelos europeus e os seus descendentes ou oferecendo-lhes toda sorte de resistência, contribuíram substancialmente para a conformação que vieram a tomar as grandes massas da população que hoje ocupam o território nacional. Esse desconhecimento generalizado se deve, naturalmente, a diferentes fatores. Um deles, entretanto, e não dos menores, é a falta de pesquisa sobre a extensa documentação acumulada em arquivos de toda ordem, nas várias regiões do país e no exterior. Essa documentação, na maioria dos casos não indexada e em muitos casos mal conservada, exige um esforço considerável de parte dos pesquisadores que se proponham a reconstituir aspectos da história das relações de cada povo indígena identificável com os não-indígenas. É preciso não só associar documentos dispersos em instituições muito afastadas entre si e levar em conta lacunas geradas pela perda de segmentos importantes da documentação, mas também integrar na pesquisa histórica conhecimentos de natureza etnográfica, arqueológica, lingüística e genética. Aí surgem outras dificuldades devido às grandes lacunas de que padecem todas essas áreas de conhecimento.
A pesquisa cujos resultados são ordenadamente expostos no presente trabalho incide sobre o povo conhecido historicamente como Cayapó (do Sul), cuja presença no amplíssimo território que se estende do noroeste de São Paulo às imediações do atual Distrito Federal e do Triângulo Mineiro ao norte do Mato Grosso do Sul condicionou fortemente, nos séculos XVII e XVIII, o acesso português às minas de Mato Grosso e Goiás e a ocupação pastoril daquelas extensas regiões. Giraldin, apoiado em documentação zelosamente buscada, lida e analisada, descreve os aspectos principais da tenaz resistência dos Cayapó do Sul e das ações e reações dos portugueses. Por outra parte, o autor
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identifica a sobrevivência de parte dos Cayapó do Sul ainda no começo deste século tanto no Triângulo Mineiro como nas imediações do Salto de Urubupungá, e incorpora a descoberta recente de que os índios conhecidos como Kren-akarôre são descendentes de outra parte dos Cayapó do Sul, que, para escapar à tenaz perseguição portuguesa, deve ter migrado de Goiás através do rio Araguaia e do rio das Mortes para além das cabeceiras do Xingu, onde, no norte do Mato Grosso, ficaram a salvo dos colonizadores até os anos 70 do nosso século. Com a abertura da rodovia Transamazônica foram forçados a novo e desastroso contato, que os reduziu, em dois anos, de cerca de 700 pessoas a menos de cem. Foram então transferidos para o Parque Indígena do Xingu, de onde agora se empenham em sair para voltar ao hábitat ao qual se adaptaram, no rio Peixoto de Azevedo. A autodenominação Panará que hoje se dão os Kren-akarôre é a mesma que se davam no início deste século os Cayapó do Triângulo Mineiro e a mesma que foi registrada entre os que estavam aldeados no começo do século passado em São José de Mossâmedes em Goiás. Uma das evidências mais claras para a identificação dos Kren-akarôre com os antigos Cayapó do Sul é de natureza lingüística — a concordância das diversas amostras lingüísticas colhidas no passado com a língua falada atualmente pelos Kren-akarôre, ou seja, pelos atuais Panará. Para essa identificação contribuiu significativamente (substancialmente) a pesquisa de Giraldin, pois a ela se deve a descoberta do mais substancial documento lingüístico sobre os Cayapó do Sul, encontrado por ele no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. No presente trabalho é incluída a transcrição completa desse precioso documento até agora inédito, assim como dos demais materiais lingüísticos menores, incluindo mais um inédito e outros de difícil acesso.
Esta é, portanto, uma obra importante, baseada em pesquisa original, rica em resultados tanto para a história do povo Panará (Kren-akarôre) e da sua língua como para a história da colonização do noroeste de São Paulo, do Triângulo Mineiro e do sul de Goiás, tomando como agentes da história não só os colonizadores portugueses, mas sobretudo o povo que se viu invadido em várias frentes e resistiu valentemente por quase duzentos anos até ter de exilar-se e adaptar-se a outro meio ambiente, mas mantendo ainda sua independência.