- Edelweiss, Frederico. 1971. Curt Nimuendaju na Bahia. Universitas 8/9: 277-280.
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O último quartel de 1938 reservou-me agradabilíssima surprêsa ao anunciar-me a velha ama a visita de um senhor, que parecia "homem direito" mas de "nome esquisito, Mandacaju".
Grande foi o meu espanto, quando se me apresentou Curt Nimuendaju (1), meu velho conhecido através de estudos do nosso estranho mundo indígena. Viera procurar um insignificante diletante em Etnologia, a conselho dos frades franciscanos, no intuito de colhêr algumas informações pessoais a respeito do Sul do Estado da Bahia e principalmente no de inteirar-se do que existia publicado dos antigos viajantes e funcionários sôbre os primitivos habitantes da região.
Principalmente na última parte pude satisfazer a sua curiosidade, mostrando-lhe o principal do que na matéria se conhecia.
Em decorrência, Nimuendaju passou duas semanas entre os meus livros. Só interrompia as suas leituras e notas na hora do almôço e êste, para desespêro da minha mulher, se restringia terminantemente a carne ou peixe, de preferência assados, feijão e farinha. Rara vez e apenas constrangido provava outros pratos.
Ainda me lembro vivamente das nossas discussões, principalmente sôbre dialetologia tupi-guarani, livros guaranis e tupis dos jesuítas, a sua tendência unificadora, tanto dos dialetos guaranis de lá como dos tupis de cá, e sôbre a última novidade: o velho dicionário tupi dos jesuítas, que finalmente acabara de sair à luz, em São Paulo.
Embora estivesse eu então atarefado em assuntos diferentes e mais práticos, foram momentos maravilhosos, ainda que muito fugazes.
À sua volta da jornada oficial de observação, que o levou até Vitória, Nimuendaju não me achou em casa. Estava eu na ocasião em viagem. Dêsse desencontro originou-se a carta-relatório, cuja tradução ora se publica a pedido de amigos universitários ávidos por tais informações, principalmente quando fluem de pena tão abonada.
FREDERICO EDELWEISS
Belém do Pará, 15 de agôsto de 1939.
Meu caro Edelweiss:
Quando passei na Bahia por ocasião da minha viagem de volta, de Vitória ao Pará, tornei a procurá-lo em sua residência para reiterar-lhe os meus agradecimentos pela franqueza com que pôs à minha disposição a sua maravilhosa biblioteca.
Infelizmente não o encontrei. Na qualidade de etnólogo deve sem dúvida interessá-lo saber o que ainda sobrevive dos nossos índios na região entre o Rio de Contas e o Rio Doce por mim visitada.
Observei o seguinte:
1. Em Olivença existem cêrca de 300 descendentes dos tupiniquins, dos quais a têrça parte mestiços e totalmente desculturados. Dois dêles ainda falam alguma cousa da língua geral.
Os poucos sobreviventes dos índios costeiros de Barcelos, Trancoso etc. não visitei.
2. Os índios baenãs das cabeceiras do Rio Cachoeira de Itabuna contam uns dez indivíduos selvagens e hostis sem morada fixa. Não foram ainda classificados lingüisticamente. Talvez falem um dialeto pataxó.
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3. Os pataxós, uma subtribo dos índios hãhãhái, contam 16 indivíduos no Pôsto Paraguaçu do SPI nas margens do Rio Cachoeira. Os mais novos bancam os civilizados; os mais velhos ainda falam a sua língua e conservaram dois ou três elementos da cultura primitiva, mas não passam de polichinelos indígenas com os quais, em tal ambiente, nenhum trabalho científico foi possível empreender; muito o senti, porque êsses pataxós são os índios mais primitivos que até hoje encontrei.
Nas margens de um afluente esquerdo do Jequitinhonha ainda vivia há 4 anos um grupo de sete pessoas da mesma tribo, mas como depois nada mais dêles se soube é provável que esteja extinto.
4. Os camacãs que encontrei no Pôsto Paraguaçu estavam representados por uma mulher velha puro sangue e dez mestiços. A velha ainda fala a língua e se lembra de algumas tradições (2).
5. Os índios de São Bento somam cêrca de 130 indivíduos dos quais 86 vivem no Pôsto Paraguaçu. Mais de 50 por cento são mestiços. Nada conservaram da sua língua e cultura primitivas e de já muito teriam sido absorvidos pela população sertaneja, se não fôssem sistemàticamente perseguidos e afugentados. São na sua maioria descendentes dos cariris, dos camurus e sapuiás, da aldeia de Pedra Branca, perto de Amargosa, de onde foram expulsos a ferro e fogo. Em conjunto com alguns outros índios (tupinaquis? botocudos?) da aldeia de Trancoso fundaram então a aldeia Santa Rosa, perto de Jequié, de onde não demoraram a ser também expulsos. Depois de muitas andanças reuniram-se novamente em S. Bento, nas cabeceiras do Catolé, um afluente da margem esquerda do Rio Pardo. Não tardou que também ali se vissem despojados das suas casas e plantações, só lhes restando refugiar-se no Pôsto Paraguaçu, no que eu os aconselhei e amparei na medida das minhas possibilidades.
6. Os maxacaris, que se chamam a si mesmo monatxóbm, montam a 130 indivíduos, dos quais um terço de mestiços. Têm língua e religião próprias, apresentando êste interêsse todo particular pelo culto às almas dos mortos inteiramente entregue aos homens, que o mantêm secreto. Isto explica a existência da "casa-dos-homens", cuja entrada é vedada às mulheres. Havia zunidores sagrados de que as mulheres não podiam tomar conhecimento e máscaras primitivas, que para as mulheres representavam almas de defuntos, etc. etc. Ainda mantém cêrca de 50% da sua primitiva cultura material.
A tribo não vive em guerra aberta com os invasores do seu território, mas a situação é de contínuo sobressalto dentro da sua legítima gleba, que foi retalhada e vendida subreptíciamente pelo último diretor do Pôsto. A qualquer momento pode haver derramamento de sangue e só me admira que já o não houvesse. Com o SPI a tribo não mantém contato (3).
Os maxacaris que vivem nas cabeceiras dos afluentes do Rio Itanhaém (Rio Alcobaça), próximo à fronteira da Bahia com Minas Gerais, são os únicos índios de tôda a zona que ainda formam uma tribo e oferecem interêsse etnolôgico.
Entre 1816 e 1818 foram visitados por Saint Hilaire, Pohl e o príncipe de Wied-Neuwied. Desde então nada mais se soubera dêles. Não pertencem à família jê, (4) nem lingüística nem culturalmente, mas constituem com os macunis, monoxós, e capoxós, etc. já extintos uma família à parte, como Loufastka [sic] conseguiu comprovar há algum tempo.
7. Da família dos botocudos pude observar:
a) Dez indivíduos puros e outros tantos mestiços na região da antiga missão, hoje cidade de Tambacuri, no Estado de Minas Gerais. São restos das tribos aranã, nacnianuc e poiitxá. Êstes últimos ainda eram hostis até 1908. A maioria ainda fala a sua língua, embora no mais estejam completamente desculturados.
b) No pôsto do SPI Guido Marli-
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ère na margem setentrional do Rio Doce (Minas) vivem 35 descendentes da tribo nacrehé do Rio Manhuaçu. Cêrca de 50 por cento são mestiços. Além da língua nada mais possuem da sua cultura original.
No mesmo pôsto ainda moram seis outros botocudos, sobreviventes das tribos txonvúgn, crenác, nacpie (ncutcrác) e nactun.
c) No Pôsto de Pancas, ao norte do Rio Doce (Espírito Santo) vivem 13 botocudos, doze dêles da tribo nacrehé e um, o último da tribo minháiirugn, que ocupava antigamente as margens do Pancas (5).
8. No mesmo pôsto vivem, há dois anos, de 50 a 60 guaranis originários do Rio Grande do Sul de onde vieram pelo litoral. Na costa de São Paulo viram o seu número reforçado por outros guaranis. Os do Rio Grande deixaram-se ficar finalmente no Pôsto de Pancas, mas o troço paullsta continuou a sua viagem ao longo do mar, aparentemente à procura da "terra sem mal". Nada sei do paradeiro atual.
Resumindo o resultado científico destas minhas andanças de oito meses, devo confessar que foi decepcionante, pois não passa: dos têrmos de parentesco e de resumida coleta de contos e lendas dos camacãs; de um estudo muito superficial dos maxacaris; da lista dos têrmos de parentesco e de uma vasta árvore de costado de um bando botocudo, a qual ilustra fielmente a existência do sororato e levirato; de uma interessante coleção de contos e lendas do mesmo grupo que ilustram as suas idéias religiosas; de uma estátua de madeira que o último nacpie esculpiu para mim espontâneamente; na forma em que nos tempos idos entrava no culto aos marét (entes sôbrehumanos de ambos os sexos, visíveis apenas a uns poucos privilegiados).
Dos pataxós, camacãs, maxacaris e dos botocudos das tribos: aranã, nacnhanuc, nacrehé, nactü e ninhãirugn tomei notas lingüisticas sem maior valor. Dos maxacaris fiz uma coleção etnográfica de 260 objetos, que distribui entre os museus do Rio de Janeiro, Belém do Pará e Gotemburgo. Dos pataxós, consegui apenas uns poucos objetos.
Pelo mesmo correio tomo a liberdade de enviar-lhe algumas separatas de publicações minhas e muito lhe agradeceria se também se lembrar de mim nas suas futuras publicações.
Com gratas recordações, aqui permaneço o seu penhorado
CURT NIMUENDAJU
1. O próprio Nimuendaju foi sempre reticente, mesmo em colóquio informal comigo, quanto ao sentido dêste seu nome apapocuva. Dos interpretadores, só o Prof. Egon Schaden nos oferece sugestões para uma tradução aceitável. Revista do Museu Paulista. São Paulo, 8: 56, 1954, nova série.
Entretanto, para um guaranista ou mesmo um tupinista, só a sílaba inicial ni e principalmente a final ju podem provocar dúvidas sem o auxílio de outros dialetos.
- Ni corresponde ao pronome reflexivo tupi nhe - se.
- mu é a forma apapocuva da partícula transitivadora mo de diversos dialetos tupi-guaranis.
- endá, em tupi endara (t-~r-), se traduz por: o que está quieto, o sedentário.
- Nimuendá tem a forma nhemoendara em tupi e se traduz por: o que se aquieta, o que toma pouso.
- ju advérbio apapocuva que parece poder traduzir sofrìvelmente por: mesmo, certamente, definitivamente.
Portanto, Nimuendaju vem a ser: O que definitivamente toma pouso, — o que se incorpora.
2. Vide noticias mais desenvolvidas em Nimuendaju & Guérios. Cartas etno-lingüisticas. Revista do Museu Paulista. São Paulo, 2: 207-41. 1948, nova série.
3. Dados adicionais encontram-se em Revista de Antropologia. São Paulo, 6: 53-61, 1958.
4. O grifo lembra a discordância
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surgida numa de nossas trocas de opiniões.
5. Vide Baldus, H. Bibliografia crítica da etnologia brasileira. São Paulo, Comissão do IV Centenário, 1954. v. 1, § 1110. O artigo desenvolve a organização social e as crenças dos botocudos.