Ayvu Rapyta (Cadogan 1959): "Nota Preliminar" de Egon Schaden

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NOTA PRELIMINAR


Em 1953, a "Revista de Antropologia" iniciou a publicação da obra "Ayvu Rapyta" (O fundamento da língua humana), da autoria do incansável pesquisador paraguaio León Cadogan, indiscutivelmente o melhor conhecedor da cultura guarani. Nas páginas da revista, no entanto, puderam aparecer apenas os três primeiros capitulos do trabalho, razão pela qual ficou resolvido seria editado o texto completo em forma de volume na série dos Boletins da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Embora com grande atraso, apresentamo-lo agora aos estudiosos da cultura guarani, que nêle encontrarão material copioso e sobremodo elucidativo.

O trabalho encerra textos míticos e ensinamentos religiosos dos Mbüá-Guaraní, que os sacerdotes da tribo guardam em segrêdo diante de quaisquer estranhos, mas que o autor obteve no idioma original, graças à confiança que mereceu da parte dos índios e em retribuição de benefícios a êles prestados.

Em oposição ao que se verifica na religião e mitologia de outras populações guarani do Paraguai e de territórios vizinhos, os índios Mbüá-Guarani do Guairá (autodenominação: Jeguaká-va Tenondé porã gue í), que ditaram os textos aqui reproduzidos, parecem conservar as suas tradições na original pureza, i. é, sem modificação por influência cristã, quer do tempo das missões jesuíticas, quer da época mais recente. Mesmo outras populações do grupo mbüá, como as da região paraguaia de Encarnación, do território argentino de Misiones e do Brasil meridional, revelam, ao mais ligeiro exame, terem assimilado uma série de elementos cristãos através do convívio com representantes do mundo ocidental. O próprio sr. Cadogan ouviu de um índio mbüá de Yvy Pytã versões guaranizadas de capitulos do Novo Testamento, embora despidos de seu significado cristão e adaptados ao pensamento místico da religião tribal. Tanto mais valiosa para estudos comparativos revela-se uma coleção de textos como a reunida por Cadogan durante muitos anos de paciente trabalho. De nenhuma população guarani se publicou até hoje acervo mítico comparável em riqueza ao que ora possuímos dos Mbüá do Guairá.

No prefácio, o autor narra como, após vários anos de relações amistosas com a tribo, durante os quais não suspeitara sequer da existência dos ensinamentos secretos ("ñe ẽ porã tenondé", as primeiras palavras formosas), foi afinal iniciado nessas tradições como que a título de recompensa por ter obtido libertação de um membro da tribo que estava prêso

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na cadeia de Villarrica. E conseguiu que os índios lhe ditassem grande parte dos mitos "esotéricos". Depois de transcrevê-los no próprio dialeto mbüá, Cadogan lhes acrescentou a tradução espanhola, acompanhada de notas lexicológicas, indispensáveis à compreensão dos textos, tanto mais que êstes estão vazados em linguagem por assim dizer sagrada, com vocabulário em grande parte diverso do que vigora no trato profano.

Cadogan insiste no fato de não ter feito estudos teóricos de Antropologia Cultural que o habilitem a empreender a análise cientifica do material recolhido. De qualquer modo, porém, ninguém deixará de reconhecer-lhe qualidades excepcionais de pesquisador. Entre elas, notável capacidade de discernimento para ajuizar com segurança de resultados cientificamente válidos em oposição a interpretações duvidosas ou simples analogias que tenderiam a impor-se a qualquer espírito menos prevenido. Daí o valor de sua contribuição, que se evidencia desde logo a quem quer que se ocupe com o estudo comparativo da mitologia sulamericana.

São Paulo, junho de 1958.

E. Schaden

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