- Arnaud, Expedito. 1983. Curt Nimuendajú: aspectos de sua vida e de sua obra. Revista do Museu Paulista, Nova Série, XXIX, p. 55-72. [Disponível também em PDF]
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CURT NIMUENDAJÚ
ASPECTOS DE SUA VIDA E DE SUA OBRA
Expedito Arnaud (*)
ABSTRACT
This article refers to the life and work of the ethnologist Curt (Unkel) Nimuendajú. He was born in Jena (Germany), in April 17, 1883. In 1905, he got in touch with Guaraní Indians (São Paulo). He continued his studies among many other groups until his death in December 10, 1945. After these studies he made a monumental ethnohistorical map and has published 50 works. The most important of these works were translated into German and English.
Curt Unkel nasceu na cidade de Iena (Turíngia), situada na Alemanha Central, em 17 de abril de 1883, e teve como pais Julius e Maria Unkel (Pereira, 1946:9). Seu pai, que era comerciante, faleceu por ocasião de viagem realizada a Moscou, logo no primeiro ano do nascimento do filho (ou um pouco mais tarde); e decorrido mais algum tempo verificava-se o falecimento de sua mãe. Passou então Curt a ser criado a princípio, por uma avó e depois por uma tia (Schaden, 1978:8).
Na linguagem expressiva de Nunes Pereira, a Turíngia é "uma região eleita por extensas e imponentes associações vegetais, denominada geograficamente 'floresta da Turíngia' e, poeticamente, 'o coração verde da Alemanha" (Pereira, 1946:9). Assim, aprendeu Curt, ainda no berço natal, "a amar as florestas com as suas lendas e as suas tradições, os seus seres e suas divindades… " (Ibid.:10). Na escola, organizou com alguns colegas "uma pandilha de índios", que era praticada nos bosques de Iena, daí lhe nascendo, provavelmente, o desejo de algum dia viver com os indígenas (Schaden, 1978: 8). Logo que terminou o curso secundário foi trabalhar como mecânico ótico na fábrica Zeiss, onde passava muitas horas estudando mapas e lendo tudo o que existia, na biblioteca da fábrica, sobre os índios da América do Norte e do Sul (Ibid.). Ao mesmo tempo, fazia exercícios de tiro ao alvo no bosque de Iena, a fim de preparar-se para a vida na selva (Ibid.).
Em 1903, com a ajuda de sua meia-irmã, professora, que lhe custeou as despesas (informações do médico Fritz Cappeler, de Bad Salzungen
(*) Do Departamento de Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi.
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falecido em 1965) (Ibid.), conseguiu viajar para o Brasil em companhia de outros emigrantes, havendo fixado residência em São Paulo (Pereira, 1946: 15). Não se sabe que tarefas realizou nos dois primeiros anos de permanência. Porém, como ele mais tarde revelou, ainda em 1905 estabeleceu contatos com os índios Guaraní do oeste de São Paulo, entre os quais viveu, com poucas interrupções, até 1907, ano em que foi aceito como membro da tribo com todas as cerimônias, recebendo o nome indígena Nimuendajú ("aquele que fez residência entre nós") e que acabou por adotar (Nimuendajú, 1978:28).
Durante os três anos seguintes esteve entre os Kaingang (também conhecidos por Coroados), entre os Ofaié-Xavante e entre os Terena (Chané), mas sem deixar de manter contatos esporádicos com os Guaraní. Já então se encontrava trabalhando no Museu Paulista, dirigido pelo seu compatriota Hermann von Ihering, o qual, em 1911, disse haver recebido "especial auxílio do Sr. Kurt Unckel, amigo enthusiasta e bom conhecedor dos índios, resultando de suas expedições a serviço do Museu, no ano passado… novas e importantes informações que vieram corrigir em parte as anteriores" (Baldus, 1954:8). O mais importante resultado dessas viagens foi a verificação da diferença lingüística entre os Xavante de São Paulo e os de Mato Grosso (Ibid.).
Possivelmente, por não se coadunar com as idéias de von Ihering, que passara a considerar os índios como um empecilho para a civilização e preconizava o seu extermínio, ingressou Nimuendajú no Serviço de Proteção aos índios, em 1911 (um ano após sua fundação), por melhor se identificar com os ideais humanísticos de Rondon. Logo em 1911 e 1912 visitou os grupos indígenas situados a oeste e na região costeira de São Paulo (Guaraní, Kaingang e Kaiguá); e, em 1913, esteve em contato com grupos do Paraná (Kaingang) e do sul do Mato Grosso (Opayé, Guaraní e Kaiguá) (Pereira, 1946:51).
Ainda em 1913 resolveu mudar-se para a Amazônia. Entre 1915 e 1921, viajando por conta própria ou a serviço do Museu Paraense Emílio Goeldi, realizou Nimuendajú observações entre os Tembé, Aparaí, Araras e Kayapó (Ibid.:25-26). Em 1921 e 1923, a convite do Inspetor do S.P.I. Bento Lemos, sediado em Manaus, participou da pacificação dos Parintintin, na época considerados os índios mais aguerridos do território brasileiro. Sua população não excedia, em 1922, a 250 indivíduos (cerca de 50 guerreiros), mas puderam exercer "domínio sobre um território de 440 km2, rechaçando índios ou civilizados que deles se acercassem" (Ribeiro, 1962:63-64); e estendiam suas "correrias'', segundo falou o próprio Nimuendajú, através duma área aproximada de 22.000 km2 (Pereira, 1946:32).
As peripécias havidas no decorrer da pacificação expôs Nimuendajú em diversos relatórios enviados ao S.P.I. e em um artigo publicado no Journal de la Société des Américanistes de Paris (Ibid.:33). Sua narrativa da última fase de uma das pacificações foi reproduzida extensamente
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por Ribeiro (1962:67-80). Com respeito às situações verificadas após a pacificação, assim escreveu Nimuendajú: "Uma proteção pressupõe a superioridade do protetor sobre o protegido. Foi exatamente o que ainda não conseguimos. Ainda poderemos durante anos receber pacificamente os Parintintin no Posto … mas a pacificação será uma ilusão enquanto os índios não nos reconhecerem como uma autoridade. Todos os esforços devem convergir agora sobre este ponto". E aconselhava: " … em primeiro lugar, tanto o encarregado do Posto como os trabalhadores, devem se comportar como homens sérios e respeitáveis … evitando uma intimidade demasiada com os homens, e mais ainda com as mulheres …" (Pereira, 1946:33).
Em 1922, ano em que adquiriu a cidadania brasileira e passou a adotar oficialmente o sobrenome Nimuendajú, o eminente etnólogo Erland Nordenskiöld, do Museu de Gotemburgo (Suécia), por intermédio do Consulado da Suécia em Belém do Pará, entrou em contato com ele, já reputado como "um dos melhores conhecedores dos índios do Brasil" (Faria, 1981:18). A partir de então, a cooperação entre ambos prosseguiu sem interrupção, tendo o Museu de Gotemburgo lhe manifestado "o maior reconhecimento por todas as coleções do Brasil que ele obteve e que foram feitas não somente com o maior cuidado, mas também freqüentemente com uma bela audácia" (Ibid.).
Ainda para o Museu de Gotemburgo, entre 1922 e 1926, realizou escavações arqueológicas na Ilha de Marajó, Tapajós, Trombetas, Jamundá, Cariana, Oiapoque, Madeira, Autaz e Tocantins (Pereira, 1941:51-52). Em 1925, estudou os Palikúr e os demais índios do Uaçá; em 1926 os Mura e os Mundurukú (Madeira); e, em 1927, os Baniwa, Wanána, Tariana, Tukáno, Makú, etc., nos rios Negro, Içana e Uaupés (Ibid.). Já subvencionado pelos museus de Hamburgo, Dresden e Leipzig, ao mesmo tempo em que obtinha coleções etnográficas, realizava observações entre os Guajá, Canelas, Apinayé, Xerente, Krahó e Tukúna (1929) (Ibid.:27-52).
A partir do início da década de 1930, até por volta de 1940, a princípio sob os auspícios do Instituto Carnegie e depois da Universidade da Califórnia, além de efetuar pesquisas entre os Fulniô e Sururu (Pernambuco), passa a estudar de modo intensivo os grupos Jê — Ramkokamekra-Canelas, Apinayé e Xerente (Ibid). Ao mesmo tempo, inicia uma proveitosa colaboração com o famoso antropólogo Robert Lowie (americano de origem austríaca), que se tornou desde então o editor de suas monografias, com quem escreveu dois trabalhos em co-autoria.
Em 1934, após muitos anos de ausência, viajou até a Europa onde avistou-se com os amigos do Museu de Gotemburgo e reviu rapidamente a Alemanha (Ibid.:27). Em 1935 e 1936, voltou a pesquisar entre os Canelas; em 1937, esteve entre os Apinayé e os Xerente; em 1938 e 1939, percorreu a Bahia, Minas e Espírito Santo, havendo realizado observações entre os Pataxó, Kamaká, Masakari e Botocudos; em 1940,
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visitou os Gorotíre-Kayapó no Xingu (Ibid.:52); e, em 1941 e 1942, esteve longamente estudando os Tukúna no Alto Solimões (fronteira do Brasil com o Peru e a Colômbia), os quais havia observado, preliminarmente, em 1929. Acontece que, por ocasião da estada de 1942, em razão de sua origem alemã, Nimuendajú foi preso e conduzido a Manaus, onde, entretanto, foi logo desfeito o engano, tendo sido solto, segundo soubemos, por intervenção de vários amigos, inclusive de D. Heloísa Torres, Diretora do Museu Nacional.
Em fins de 1941, começou a ministrar um curso no Museu Goeldi sobre culturas indígenas, bem como sobre os Incas, os Maias, os Aztecas, os Apaches, os Iroqueses e os povos da costa dos EE.UU., para cinco alunos — Emília Dyer, Evalda Falcão, Lígia Estevão de Oliveira e Maria de Lourdes Jovita (Ibid.: 19-60). Em 1942, confeccionou a primeira versão do seu famoso mapa etno-histórico para a Smithsonian Institution e elaborou mapa com as tribos existentes no Estado do Pará para a 2.ª Inspetoria Regional do S.P.I., então chefiada por José Maria da Gama Malcher, com quem mantinha fortes relações de amizade. E, em 1943, realizou para o Museu Emílio Goeldi a segunda cópia do mapa etno-histórico.
Ainda em 1943, viajou até o Rio de Janeiro a convite de Rondon, que lhe pretendia entregar a chefia das investigações do Conselho Nacional de Proteção aos Índios (Emmerich & Leite, 1981:29). Aí foi acometido de problemas de saúde, havendo os médicos lhe aconselhado a abandonar definitivamente a vida que vinha levando. Então escreveu cartas a Robert Lowie e a Alfred Métraux nos seguintes termos: "Portanto, depois de quase 40 anos, a minha atividade em convivência com os índios chegou ao seu fim, quando eu menos esperava. O Sr. compreenderá como isso me entristeceu, sabendo como sabe que essa vida era toda a minha satisfação. Além do que, eu pensava de fazer ainda muitas coisas que agora talvez nunca mais serão feitas" (Ibid.). Para Herbert Baldus assim escreveu: "Parece-me impossível que eu não veja mais os campos dos Canelas banhados pelo Sol, nem as matas sombrias dos Tukúna. Mas terei de conformar-me tratando de começar uma nova vida" (Ibid.).
Em agosto de 1944 terminou o curso sobre culturas indígenas, que começara a ministrar em 1941 no Museu Emílio Goeldi; e em setembro do mesmo ano começou a terceira versão do mapa etno-histórico para o Museu Nacional. A respeito deste trabalho, em carta dirigida a D. Heloísa Torres, expressou-se do seguinte modo: "Comecei o trabalho do mapa no dia 5 de setembro, vae progredindo devagar porque não aguento mais que umas 5 horas por dia na posição forçada a que o tamanho do mapa me obriga. Creio que estará pronto até o fim do anno. Quando o mapa chegar no Museu, a Sra. me dirá se isto é ou não um trabalho de 4 meses" (Ibid.).
Entrementes, dirigiu uma carta ao presidente da Fundação Brasil Central (Ministro João Alberto), desligando-se do compromisso que havia
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assumido para instalar um museu etnográfico em Aragarças. Isto porque, tendo tido conhecimento de que o diretor da Estrada de Ferro do Tocantins (subordinada a F.B.C.) havia conduzido duas caixas com granadas, para possível emprego contra os Parakanân e outros índios, considerou que não poderia trabalhar para uma instituição que "tratava os índios com granadas, etc." (informação pessoal de José Maria Malcher).
A despeito das recomendações médicas, Nimuendajú acabou viajando para o Alto Solimões, em 1945, sob os auspícios do Museu Emílio Goeldi e do Museu Nacional, na tentativa de prosseguir suas pesquisas sobre a língua e a mitologia cios Tukúna. Aí faleceu no dia 10 de dezembro do aludido ano, havendo seu sepultamento ocorrido no dia seguinte no cemitério de Santa Rita de Weil, Município de São Paulo de Olivença (Amazonas). Em junho de 1946, por iniciativa do Comandante Braz de Aguiar, Chefe da Comissão de Limites, de José Maria Malcher, Chefe da 2.ª Inspetoria Regional do S.P.I., e de Inocêncio Machado Coelho, Diretor do Museu Emílio Goeldi, em homenagem a Nimuendajú foi inaugurada uma placa de bronze na sala da biblioteca do Museu Goeldi, onde atualmente funciona o Departamento de Museologia.
Os restos mortais de Nimuendajú foram exumados em fevereiro de 1957, tendo sido transladados para o Museu Paulista, onde foram depositados em urna funerária, tipo igaçaba, mandada confeccionar pela Sociedade Brasileira de Sociologia. Em 1981 ocorreu seu enterro definitivo, na sepultura 21 (quadra IV) do cemitério do Redentor (em São Paulo SP), ao lado do jazigo de um seu amigo (Paul Alicke), a quem, em 1920, havia oferecido um exemplar de seu trabalho sobre os Apapokuva-Guaraní, como "lembrança das visitas dos índios em sua hospitaleira casa" (Hartmann, 1981/82: 187).
Nimuendajú residiu, em Belém do Pará, numa modesta casa de sua propriedade, sita à travessa do Chaco (bairro do Marco), até hoje conservada na feição original e em cujo quintal plantou vários pés de kupá, a mais tradicional entre as plantas cultivadas pelos Timbira. Era casado com D. Jovelina Nimuendajú, uma mulher de origem humilde que não lhe proporcionou filhos.
Assim que faleceu Nimuendajú, o Chefe da 2.ª Inspétoria Regional do S.P.I. (José Maria Malcher), entrou em contato com D. Heloísa Torres, no sentido de que o Museu Nacional adquirisse seu acervo. Tendo D. Heloísa concordado em fazer a aquisição, passou o Museu a enviar para D. Jovelina, mensalmente, a importância de Cr$ 1.000,00, até por volta de 1949/50, quando ocorreu a compra definitiva do aludido acervo pela importância de Cr$ 80.000,00. Com o saldo verificado, foi adquirida uma casa para D. Jovelina, pois aquela que o marido lhe havia deixado já tinha ela vendido.
A partir de então, e durante vários anos, foi desconhecido o paradeiro de D. Jovelina, até que afinal a localizamos, já em fins da década
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de 1960, em estado de penúria. Havia vendido a nova casa e sobrevivia como lavadeira, residindo em companhia de uma família num longínquo subúrbio de Belém. Nos últimos anos de vida passou a desfrutar de uma modesta pensão concedida pelo governo do Estado do Pará, em atenção a um pedido feito pelo Sr. Miguel Silva, funcionário do Museu Goeldi.
Em complementação a essa parca remuneração, os pesquisadores do Departamento de Antropologia do Museu passaram a lhe proporcionar uma ajuda, mensalmeníe. Mas considerando as condições precárias em que ela vivia, o Dr. Luiz Seaft, Diretor do Museu, após haver possibilitado seu tratamento no hospital da Santa Casa de Misericórdia, conseguiu interná-la no Asilo Macedo Costa, onde ela terminou tranqüilamente os seus dias, em 1972.
Em 40 anos de atividades, Nimuendajú efetuou estudos entre 45 grupos indígenas distintos, aproximadamente. Afora isso, como vimos, obteve numerosas coleções etnográficas e arqueológicas, as quais forneceu às instituições a que esteve ligado. Como salientou Faria (1981:20), "ele fornecia matéria-prima… mas nunca se interessou pelos objetos em si, pela tecnologia em si, nem pela origem e distribuição dos traços e complexos da cultura"; entretanto, "acompanhou… muito de perto, os procedimentos de Paul Rivet… em termos de coleta de vocabulários e procura de afinidades entre as diversas línguas indígenas".
Segundo Pereira (1946:30-31 ), também merecem referência seus estudos sobre o "curare ou guré", cujo preparo entre os Tukúna "conseguiu acompanhar passo a passo… e levou vivo para Belém material botânico importantíssimo, vivo e exsicata, tendo realizado um estudo completo também da confecção da zarabatana". Mas, pode-se dizer que Nimuendajú foi alcançar seus mais merecidos méritos pela acuidade de suas descrições e análises das economias, organizações sociais, usos, costumes, cerimoniais e ideologias dos grupos que estudou, e cujas monografias a respeito sempre procurou preceder com históricos bem fundamentados e caracterizações territoriais.
Sem possuir uma formação acadêmica, como seus ilustres predecessores e contemporâneos (von Martius, von den Stein Koch Grünberg, Max Schmidt e outros), conforme Schaden (1978:10), orientou-se inicialmente nas pesquisas através de um velho compêndio de etnografia geral, de meados do século passado (Die Völker der Erdball, de Henreich Berghaus), mas foi melhorando seus conhecimentos, não só através da leitura como da correspondência mantida com antropólogos de renome, sobretudo com Robert Lowie.
Baldus (1954:484-492; 1968:508-510) menciona 46 publicações de Nimuendajú, sendo 18 com títulos em alemão, 15 em português, 10 em inglês, 2 em francês e 1 em espanhol, sendo 4 em co-autoria (2 com Robert Lowie). Afora essas publicações, foram divulgados, através do
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Handbook of South American Indians, mais 13 artigos em inglês, sendo 2 em parceria com Alfred Métraux.
Segundo Faria (1981:21), no arquivo de Nimuendajú, adquirido pelo Museu Nacional, não existe nenhum manuscrito inédito pronto para divulgação, mas sim "além dos originais de suas publicações, uma grande quantidade de anotações de todo tipo — transcrições, comentários, notas de campo, levantamentos topográficos, listas de palavras… enfim, um conjunto sem dúvida muito valioso, mas desordenado, de materiais". Em vista disso, considera que "a publicação de qualquer parte desse material só poderá ser decidida após trabalho exaustivo de avaliação, isto com respeito aos critérios extremamente rigorosos do próprio Curt Nimuendajú" (Ibid.). Não temos elementos para dizer se entre esse material existe uma coletânea de "300 histórias, lendas, contos, etc., na sua maioria escabrosas e obscenas mesmo… que pretendia publicar num grosso volume sob o título de trezentas", conforme aludiu Pereira (1946:46).
A obra lingüística de Nimuendajú, disseminada em 10 artigos em complementação a trabalhos etnológicos, consistindo de textos e vocabulários, inclusive de cunho comparativo, no dizer de Câmara Jr. (1959:5), "apresenta duas preocupações, que se destacam em qualidade de muitos de nossos pesquisadores da época". A primeira consiste em surpreender e registrar os sons lingüísticos na "sua realidade fonética, usando um método de transcrição ad-hoc e não a grafia usual do português ou do alemão". A segunda é a de tomar, em regra, "um informante definido… ressalvando os casos em que teve de socorrer-se de um informante não-nativo, ou em que o informante nativo era pouco seguro de sua língua ou as condições eram desfavoráveis à coleta" (Ibid.). Assim, tais predicados "dão ao seu trabalho lingüístico um alto teor de exação e absoluta probidade" (Ibid.). Como deficiência, considera que Nimuendajú "não usava um sistema fixo e cabal de transcrição fonética e, às vezes, as indicações se tornavam imprecisas e até confusas"; mas ele não cogitava "expor o quadro fonético da língua, mas apenas dar subsídios" (Ibid.).
Dentre os artigos que podem ser classificados como etno-indigenistas, um deles a respeito dos "Otí Xavante", conforme Baldus (1954:88), constitui "um exemplo perfeito daquilo que, em etnologia, é chamado de choque cultural. Mostra o desenvolvimento dramático do encontro de dois povos que, ignorando um o padrão de comportamento do outro, se atemorizam e se prejudicam mutuamente, ao invés de se unirem em harmonia".
Através de um outro artigo semelhante (Os Gorotíre, 1952), refere-se ao esfacelamento dessa divisão dos Kayapó Setentrionais em diversos bandos e às situações desastrosas que, posteriormente, lhe ocorreram, em razão dos seus contatos com as frentes regionais de expansão. Ao mesmo tempo, fala a respeito de 3 civilizados que tiveram papel destacado nesses contatos — Constantino Viana (seringalista), Pedro Silva (sertanista do S.P.I.) e Horácio Banner (missionário protestante).
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Constantino Viana, diz que ele "se convenceu de seu papel de amansador dos bichos" e relata os massacres e as escravizações de índios de diversas origens por ele praticados na região do Xingu (lbid.:432-439-440). Pedro Silva, reputa "como amigo convicto dos índios cuja língua aprendeu" e considera que ele trabalhou esforçadamente, impedindo a dissolução dos Gorotíre (bando Kapáire) e denunciando os crimes cometidos contra os índios. Mas não aprova a forma como ele procurava hostilizar Banner, nem quando tentava "explicar que a pacificação dos Gorotíre tinha sido obra sua", pois fora "obra dos próprios índios, que mandaram primeiro os seus prisioneiros de guerra como parlamentares … " (Ibid.:452).
Por fim, considera Horácio Banner como tendo "uma habilidade notável para tratar com os índios, havendo sua conduta contrastado de tal maneira com a de outros civilizados, que os índios julgaram ter ele descido do mundo que, conforme crêem, existe por cima do céu e onde há gente como no nosso". Destaca Nimuendajú os conhecimentos de Banner sobre a língua Kayapó, lamentando que ele não fosse "nenhum etnólogo" para expor os "preciosíssimos" conhecimentos que deveria possuir. Mas faz restrições quanto à sua postura etnocêntrica, pois só notava nos índios "aquilo que se chocava com os seus sentimentos cristãos". Considerava-os como seres humanos e não como "bichos" mas as manifestações da cultura indígena "lhe pareciam na melhor hipótese disparates caprichosos" (Ibid.:431-433-445-446).
Entre outros trabalhos de Nimuendajú, podem ser destacados os dois publicados em co-autoria com Robert Lowie (The Dual Organization of the Ramkokamekra, 1937; The Associations of the Serénte, 1939), aqui não apreciados, os quais antecederam suas monografias sobre os Timbira Orientais e os Xerente, mais adiante aludidas.
Também deve ser mencionado aquele que escreveu sob o título Bruchstücke aus Religion und Ueberliefumng der Sipáis-lndianer, em 1919/20, recentemente traduzido para o português (Id., 1981), cujos mitos "indicam claramente uma base Tupí'', tendo sido "largamente utilizados… por Lehmann-Nitsch (1936), Métraux (1979), Lévi-Strauss (1966/67) e Oliveira (1970)" (Castro & Emmerich, 1981 :7). Diz Nimuendajú (1981:11), na introdução, que suas anotações foram colhidas em condições bastante desfavoráveis, pois o mísero bando Xipaya que encontrou, em 1918/19, na boca do Baú (Alto Curuá), "estava de tal maneira sob o jugo de seus senhores cristãos que sofria múltiplas restrições no exercício de sua religião". Mas que, a despeito do desmoronamento social, os componentes do grupo ainda mantinham seus conceitos básicos e tradições, e de nenhum modo haviam se tornado cristãos (Ibid.).
A primeira de suas principais obras, focalizando os Apapokuva-Guaraní (Die sagen von erschaffung-und… der religion der Apapokuva-Guarani, 1914), publicada pela Zeitschrift für Etnologie, foi cedo considerada como um clássico da literatura etnológica brasileira. Escreve Scha-
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den (1978:12) que, ao analisar "essa história e seus fundamentos mítico-religiosos", conseguiu Nimuendajú, "sem grande aparato teórico, mas com notável capacidade de penetração, por a descoberto o "ethos" da cultura e suas conseqüências para a determinação do tipo de personalidade peculiar da tribo Guaraní".
Na sua introdução, diz Nimuendajú (1978:28) ter vivido entre os Guaraní como índio, cuja língua considera ter aprendido com imperfeição, mas talvez algo melhor que outros que haviam escrito mais que si próprio sobre a matéria. Preferencialmente, procurou instruir-se com os velhos, especialmente com os xamãs, durante horas seguidas, sobre a antiga religião e eles acabaram por se mostrarem "orgulhosos de seu aluno" (Ibid.). Acrescenta que unicamente são reputados pelos Guaraní como membros da tribo, aqueles que falam o seu dialeto, bastando uma ligeira variante para uma pessoa ser tratada como estranha e tornada objeto de burla — "fingem não entendê-la, se bem que a entendam perfeitamente". E que, os componentes de um grupo somente empregam "seu próprio apodo", quando querem contrapor-se a um outro grupo, dificilmente o mencionando a estranhos, embora revelem facilmente os apodos dos demais grupos (Ibid.).
Mostra que, a despeito da aceitação do batismo e de nomes cristãos, os Apapokuva (homens de arcos grandes) continuaram convencidos de que apenas sua religião era verdadeira, mas, ao contrário dos cristãos, nunca se mostraram intolerantes, e na comparação sempre se alegravam de encontrar aspectos coincidentes (Ibid.:50). E que, na busca da terra sem males ou do paraíso, os xamãs divergiam um tanto: para uns ela se encontrava no alto e isso só poderia ser alcançado agilizando o corpo de tal forma nas danças, até que ficasse suficientemente leve para alcançar o céu; para outros, estaria no centro da terra, onde o herói cultural Nanderuvusú tinha construído a sua morada (Ibid.:116). Mas para a maioria dos chefes xamãs, a verdadeira "terra sem males" encontrava-se a oeste, além dos mares (pariri) (Ibid.).
Entretanto, salienta que nenhum dos grupos chegados à costa aí se estabeleceu. Nenhum chegou a extrair do mar alimentos para o próprio sustento. Sempre voltaram para o interior, o suficiente para não verem nem ouvirem nada do oceano, quando perceberam que seus sonhos eram irrealizáveis (Ibid.:118). Quanto ao pessimismo Guaraní, ou seja, "o germe da decadência e da morte racial'', mesmo que já pudesse existir antes da chegada dos europeus, diz que, certamente, foi agravado pelos contatos "com os conquistadores, aventureiros de todos os países, com os jesuítas, face ao seu sistema opressivo, com os paulistas, caçadores de escravos, e seus aliados Tupí da costa, e pelas epidemias devastadoras" (Ibid.:151).
A monografia seguinte, abordando os índios Palikúr do rio Urucauá e seus vizinhos do Uaçá e do Curipi (Oiapoque, Brasil) (Die Palikur-lndianer und ihre Nachbarn, 1926), publicada pelo Museu de Gotemburgo,
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encontra-se dividida em vários capítulos, envolvendo as origens do grupo, língua, território, economia, costumes, organização social, cerimoniais, xamanismo e idéias religiosas. No decorrer da pesquisa, Nimuendajú deve ter enfrentado dificuldades na comunicação verbal, pois nenhum Palikúr, então, falava o idioma português; e embora a maioria dos homens falasse o patoá da Guiana Francesa, este dialeto não era por ele bem conhecido.
Assim, chega-se a admirar os bons resultados a que chegou, confrontando-se com outros divulgados em estudos posteriores. Com respeito à organização social, caracteriza o sistema clânico, sendo que as 7 unidades então existentes de ascendência patrilineal ainda verificamos cerca de 40 anos após. Refere-se a uma provável existência de metades, considerando que os componentes dos clãs efetuavam os enterros em dois cemitérios distintos, o que, entretanto, não pudemos confirmar com base na observação direta ou através da memória tribal.
Nenhuma alusão faz sobre o sistema de parentesco. Os cerimoniais relata com detalhes, inclusive a famosa Festa do Turé, bem como o xamanismo tribal, incluindo a crença em xamãs míticos; e comparou situações atuais com outras reveladas por antigos cronistas. Não faz distinção entre os xamãs propriamente ditos e os sopradores (feiticeiros), que constituem uma categoria especial entre os Palikúr, e não raro atuam em oposição aos xamãs. E mostra que, apesar da influência sofrida dos missionários católicos, desde o tempo dos jesuítas, o que continuava prevalecendo entre os Palikúr era "a velha religião dos xamãs".
Um capítulo especial dedica às relações dos Palikúr com os crioulos e com os brasileiros, dizendo os motivos que faziam com que eles se simpatizassem mais com os crioulos: primeiro, porque ainda não haviam esquecido as "caçadas" dos portugueses contra seus antepassados para a obtenção de escravos; e segundo, porque no Oiapoque (lado brasileiro), onde consideravam os índios como "bichos desprezíveis", eram eles tratados grosseiramente, inclusive por funcionários públicos, enquanto os crioulos os tratavam com amabilidade, mesmo que os procurassem enganar nas transações comerciais, igualmente como os brasileiros (Ibid.:109).
Dentre as três monografias de Nimuendajú sobre os índios do tronco lingüístico Jê, reputadas pelos especialistas, de modo geral, como suas principais contribuições no campo da etnologia, a primeira a surgir refere-se aos Apinayé (The Apinayé, 1939). Foi vertida do alemão para o inglês e editada por Robert Lowie através da The Catholic University of America Anthropological, de Washington. Posteriormente, foi traduzida para o português, com revisão e anotação do próprio Nimuendajú, sob os auspícios do Museu Emílio Goeldi, no início da década de 1940, então dirigido por Carlos Estevão de Oliveira, tendo sido publicada pelo Boletim do aludido Museu (Os Apinayé, 1956), já sob a administração do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia.
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Consoante expressões de Lowie, foi "a primeira monografia sobre uma tribo Jê que satisfaz as exigências modernas e a mais adequada a uma introdução ao conhecimento etnológico desse grupo lingüístico" (Ibid.). Compõe-se de 14 capítulos subdivididos em vários itens, sendo completada por dois apêndices — o primeiro com 17 mitos e lendas; o segundo, com uma lista de termos de parentesco.
Inicialmente, define Nimuendajú os Apinayé (Timbira Ocidentais) como uma ramificação dos Timbira Orientais, particularmente dos Krikatí, mas com um dialeto já nitidamente diferenciado dos falados por esses grupos Timbira e mais próximo da língua dos Kayapó Setentrionais. E descreve o território habitado pelos Apinayé, bem como suas aldeias, as relações entre elas, seus chefes, chefes honorários e conselheiros.
A organização social caracteriza como de natureza "dual", sendo as duas metades existentes ("matrilineais e matrilocais"), conforme a mitologia, criadas pelo Sol e pela Lua, respectivamente, com precedência para os membros filiados à primeira metade (Koltí = sapucaia) sobre a segunda (Kolre = castanha-do-pará), em todos os casos em que têm de funcionar simultaneamente. E mostra que tais metades funcionam com respeito às competições esportivas e às transmissões de nomes, porém não possuem nenhuma função religiosa ou econômica.
Em seguida, no discutido capítulo sobre a regulamentação do casamento, escreve que, independentemente de sua organização dual, os Apinayé são divididos em "quatro Kiyê (banda ou partido) exogâmicos, ou seja, um homem A casa com uma mulher B, um homem B casa com uma mulher C, um homem C casa com uma mulher D, e um homem D casa com uma mulher A. Segundo Leví-Strauss (1976:89), trata-se de "um sistema simples de troca generalizada, se a regra de filiação não conferisse ao sistema um caráter estático, cujo primeiro resultado é excluir os primos do número de cônjuges possíveis'', ocultando uma "divisão disfarçada entre quatro grupos endógamos". Entretanto, escreve Matta (1976:133) haver Nimuendajú cometido um "erro etnográfico", pois esses quatro Kiyê se reduzem a "um par de metades"; e que "os casamentos são realizados sem nenhuma possibilidade de se descobrir um padrão indicativo de trocas regulares entre os grupos definidos como Kiyê" (Ibid.: 136).
Um longo capítulo dedica Nimuendajú à iniciação dos novos guerreiros, que antigamente ocorria em intervalos de mais ou menos dez anos, de maneira que a diferença na idade dos participantes era "bastante grande". Processava-se a iniciação em duas fases, geralmente realizadas uma logo após a outra, cobrindo o espaço de um ano, mas no momento da observação esse tempo de duração já tinha sido reduzido (Nimuendajú, 1956:34).
Uma outra parte, também bastante extensa, além de situações relacionadas à "parentela", ao casamento, levirato, sororato, divórcio, adultério, etc., contém diversos itens mostrando a divisão do trabalho, ciclo
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de vida e tabus. Seguem-se outros capítulos focalizando os esportes, a guerra, o direito e a religião, contendo o último, além de indicações sobre os mitos, as atividades xamanísticas e os cerimoniais fúnebres.
A monografia sobre os índios Xerente (The Serénte, 1942), traduzida do alemão para o inglês também por Lowie, editada por A.V. Kidder, A. Kroeber e L. Spier, e publicada pelo South Museum de Los Angeles, é menos extensa que aquela a respeito dos Apinayé. Mas Baldus (1954:497) considerou-a igualmente como "uma obra magistral" e chama a atenção para o mapa anexo mostrando o oeste do Brasil Central com a indicação dos territórios das tribos extintas e vivas.
No capítulo inicial (afinidades e história), dá Nimuendajú a classificação dos Jê Centrais com as divisões "Akroá" e "Akwé", pertencendo a esta última os Xerente e os Xavante que, a princípio, eram raramente distinguidos. Segue-se uma extensa parte com várias divisões, focalizando a tribo, a aldeia, o conselho dos velhos, as lideranças, as metades, os clãs, a família, os termos de parentesco, a divisão do trabalho, os casamentos e o ciclo de vida. Mais adiante são focalizadas as sociedades dos homens, as competições esportivas, a guerra e a paz.
Em conclusão, a religião Xerente é evidenciada em seus vários aspectos, salientando Nimuendajú a pouca influência exercida pela igreja católica sobre os componentes do grupo, os quais, embora tratassem polidamente os eclesiásticos, consideravam de modo geral os cristãos como "mentirosos e embusteiros" (Id., 1942:84).
O trabalho sobre os Timbira (The Eastern Timbira, 1946), de igual modo como os dois anteriores, foi traduzido do alemão para o inglês e editado por Lowie, pela University of California, Pub. Amer. Archaeology and Ethnology, Berkeley and Los Angeles. Geralmente mencionado como a mais importante obra de Nimuendajú, pode-se considerá-lo como um verdadeiro tratado. Lowie o reputou como uma proeminente realização entre os estudos efetuados sobre os índios da América. Nos vários trabalhos posteriores realizados a respeito dos Timbira, tem sido o mesmo tomado como ponto de apoio, inclusive pelo antropólogo William Crocker (Smithsonian Institution), desde 1957 estudando os Ramkokamekra-Canelas, o qual, segundo nos declarou, pretende escrever um trabalho comentando seus "pontos fortes e os fracos".
Entre os Timbira, Nimuendajú observou essencialmente os Ramkokamekra-Canelas, que lhe possibilitaram a obtenção dos elementos básicos para a estruturação do seu estudo. Entretanto, pôde complementar o material entre eles obtido com dados conseguidos entre outros grupos Timbira e com uma farta bibliografia.
Introdutoriamente, descreve o território Timbira e a sua conquista pelos brancos. Comenta os autores que se ocuparam em definir os Timbira, como Paula Ribeiro, von Martius, von den Stein, Ehrenreich, Rivet,
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Wilhem Schmidt e Snethlage, e apresenta a própria classificação, a qual acabou por prevalecer na literatura etnológica, a saber: Timbira Orientais — a) Grupo do Norte: 1. Timbira de Araparytina (Gurupi); 2. Kreyé de Bacabal; 3. Kukokamekra de Bacabal; b) Grupo do Sul: 4. Kreyé de Cajuapara; 5. Krikatí; 6. Pukóbye; 7. Gaviões de Oeste ou da Floresta; 8. Kre'pu'mkateyé; 9. Krahó; 10. Porekamekra (?); 11. Kenkateyé; 12. Apa'nyekra; 13. Ramkô'kamekra; 14. Ca'kamekra. Timbira Ocidentais — 15. Apinayé (Ibid.:6-7).
Na parte referente à ecologia focaliza as aldeias, as habitações, a indumentária e as atividades econômicas. No capítulo mais extenso ("A vida social") aprecia a organização social em toda a complexidade: famílias, metades, sistema de parentesco, casamento, sociedades dos homens e ordem honorífica, bem como os aspectos relacionados ao ciclo de vida, à guerra e à paz. Os cerimoniais destaca como de suma importância para os Ramkokamekra, consumindo, por isso, grande parte de seu tempo e energia (festivais de iniciações, festivais de máscaras). E na apreciação da "corrida de toras" (o mais tradicional esporte Timbira) mostra um quadro de referência sobre esse esporte com base em vários autores e em suas observações, a partir do século XVII.
No último capítulo apresenta os mitos, a cosmologia, o animismo, a magia e o xamanismo. Fala no fracasso tanto dos missionários capuchinhos como dos protestantes entre os Krahó, por haverem tentado transformar suas aldeias em colônias. E diz que, entre os Ramkokamekra e os Apanyekra, não existia nenhuma missão protestante ou católica, havendo os índios adquirido os conhecimentos que possuíam sobre o cristianismo por intermédio dos brasileiros (Ibid.:241-242). A monografia é completada com um extenso índice de palavras.
A última monografia de Nimuendajú, relativa aos Tukúna (The Tukuna, 1952), foi também editada por Lowie por intermédio da University of California, Berkeley. Todavia, ao contrário das anteriores, foi escrita por Nimuendajú em português, porque então ocorria a 2.ª Guerra Mundial e o governo brasileiro tinha proibido o uso da língua alemã na correspondência. Não conhecendo Lowie o idioma português, a tradução foi confiada a William Hohenthal, que havia vivido no Brasil e, na qualidade de graduado em Antropologia, conhecia as técnicas necessárias para a efetuação do trabalho.
Inicialmente, apresenta Nimuendajú referências sobre o nome da tribo, o tipo físico, o território e a história, esta, aliás, bastante curta em comparação com as apresentadas nas monografias anteriores, pois, conforme esclareceu, os Tukúna foram pouco mencionados a partir dos primeiros cronistas; e entre os cientistas, a não ser ele próprio, ninguém os havia observado diretamente nas aldeias.
A requintada arte dos Tukúna destaca num capítulo especial. Na parte relacionada à organização social apresenta a classificação clânica,
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formada por 30 unidades patrilineares, divididas em metades (metade plantas e metade pássaros), não havendo, porém, segundo Oliveira (1964:65), distinguido as duas classes existentes: "a de clã e a de subclã". A fabricação e o emprego do curare descreve no trecho relacionado às atividades econômicas (caça). E, em seguida, focaliza o ciclo de vida, o casamento e a família.
Aprecia extensamente a magia e a religião, destacando a importância dos xamãs, sobretudo no passado, quando os chefes eram escolhidos entre os elementos dessa categoria, e relata a vida de um feiticeiro que, durante certo tempo, aterrorizou os Tukúna (Nimuendajú, 1942: 100-106). Faz referência aos movimentos messiânicos desencadeados no âmbito da tribo desde aproximadamente o fim do século passado. E acrescenta que os índios não gostavam de falar nas suas próprias crenças para os civilizados, especialmente para os padres, mas para satisfazer os importunes usualmente afirmavam "acreditar em "tupana" (Deus ou Santo) e ter medo de "yurapari" (Diabo), nada dizendo a respeito de seus heróis culturais (Ibid.: 140).
Como apêndice apresenta os termos de parentesco Tukúna, um glossário e classificação da língua Tukúna como "isolada" (um critério que perdura até os dias atuais), discordando assim de outros autores, inclusive de Rivet, que a considerou como um dialeto Aruak deturpado (Ibid.:155-164).
O monumental Mapa Etno-Histórico de Curt Nimuendajú (1981), editado pelo IBGE (RJ) em cooperação com a Fundação Pró-Memória, conforme ele próprio escreveu, não se baseia em trabalho etnográfico de qualquer outro autor. Os dados bibliográficos, as informações particulares, os estudos e as observações pessoais, acumulou durante algumas dezenas de anos (Ibid.:41). Distingue dos demais trabalhos congêneres pela tentativa de conseguir uma perspectiva histórica, a fim de evitar os anacronismos que enxameiam nos mesmos (Ibid.). As classificações lingüísticas foram por si mesmo examinadas ou são de sua autoria; e só em alguns casos, em que o material não lhe foi acessível, é que adotou as classificações de autoridades como Rivet, Koch Grünberg e outros (Ibid.).
Acrescenta que "sendo 40 o número de famílias lingüísticas representadas no mapa, impossível foi distingui-las todas com cores claramente diferentes". Assim, utilizou a mesma cor para três ou quatro famílias distintas, mas só aplicando igual tonalidade para famílias localizadas em pontos distantes (Ibid.). Uma só cor aplicou para assinalar os grupos de línguas isoladas e sob fundo branco registrou os grupos de línguas desconhecidas. Conforme Barbosa (1981 :24), a hidrografia foi o elemento básico usado por Nimuendajú para localizar as tribos, relacionando-as "ora às cabeceiras dos rios, ora aos interflúvios, às margens dos rios e, ainda, ao litoral" (Ibid.).
Como vimos anteriormente, elaborou Nimuendajú três versões do mapa, sendo a primeira para a Smithsonian Institution (1942), a segunda
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para o Museu Emílio Goeldi (1943) e a terceira para o Museu Nacional (1944). Esta última serviu de base para a atual publicação, após ter sido comparada com o original do Museu Goeldi (Ibid.:23).
Nos índices que acompanham os mapas, o da primeira versão indica cerca de "1.100 nomes tribais e 818 referências bibliográficas"; o da segunda contém "880 referências bibliográficas"; e o da terceira apresenta "889 referências bibliográficas datilografadas e anotações manuscritas do autor até o número 972"; e finalmente, um quarto índice registra "cerca de 1.400 grupos indígenas e 972 referências bibliográficas" (Emmerich & Leite, 1981:31).
Essas indicações mostram não só grupos indígenas situados no território brasileiro como nos países limítrofes, encontrando-se geralmente acompanhadas de datações, a partir do primeiro momento em que a identificação tribal ocorreu. Assim, com base na carta e no índice correspondente, podem ser verificados os processos migratórios havidos e as nominações diferentes porventura tomadas pelos respectivos grupos indígenas.
Consoante escreve Zarur (1981: 39), a publicação do mapa "contribuirá para os estudos de contato, não só com informações em pesquisas específicas, como também com uma visão histórica do que ocorre com diversos grupos indígenas nas diferentes áreas geográficas dotadas de tipos particulares de atividade econômica".
Conforme já tivemos ocasião de dizer, Nimuendajú ainda em vida teve justamente reconhecidos seus altos méritos como etnólogo, tanto no Brasil como no estrangeiro. E sua fama foi aumentando à medida em que suas obras, publicadas postumamente, foram sendo conhecidas. Fernandes (1958:17) o considerou "sem nenhuma dúvida a principal figura da etnologia brasileira" na primeira metade do presente século, embora acrescentasse que, dia a dia, se evidenciavam "as limitações de sua produção etnológica, resultantes quase sempre da falta de um sólido preparo especializado".
De qualquer modo, salvo melhor juízo, Nimuendajú superou seus predecessores e contemporâneos, tanto pela riqueza de informações como pela análise dos fatos, sem lhes ficar atrás no que respeita à aplicação dos conceitos. E ao contrário dos etnólogos de formação acadêmica que, geralmente, só procuravam estudar as peculiaridades das culturas indígenas (Cf. Ribeiro, 1962:27-28), Nimuendajú interessava-se vivamente pelos destinos das populações tribais.
O século já se aproxima do fim, mas Nimuendajú parece continuar mantendo a mesma posição que lhe foi atribuída por Fernandes. Deste modo, aliás, vem de se manifestar recentemente Ribeiro (1979:210), em carta dirigida a Roberto da Matta, pois considera os trabalhos de Nimuendajú como "clássicos em antropologia", valendo sozinhos mais que
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"a obra inteira dos etnólogos brasileiros", inclusive a sua própria. Mas acrescenta que, a despeito de haver o Museu Nacional "assumido há mais de 30 anos o compromisso formal e escrito de editar em português" os trabalhos de Nimuendajú, nada publicou até hoje (Ibid.).
Todavia, embora mui lentamente, além do mapa etno-histórico alguns outros trabalhos de Nimuendajú vêm de ser publicados no idioma português. Na série Religião e Sociedade-7 (1981), foi editado "Fragmentos da religião e tradição dos índios Sipáia", em versão de Viveiros de Castro e Charlotte Emmerich, a partir da versão portuguesa de F.W. Lommes. Pelas Edições Loyola (1982) foram divulgados 9 textos indigenistas ("relatórios, monografias, cartas"), com introdução de Carlos Moreira Neto e prefácio de Paulo Suess. E por sua vez, o Museu Emílio Goeldi vem de reeditar a monografia Os Apinayé (1983), marcando sua participação nas comemorações do centenário de Nimuendajú. E fala-se que o trabalho sobre a religião dos Apapokuva, já publicado em espanhol, brevemente o será também em português, bem como a monografia sobre os Timbira Orientais.
Se assim acontecer, restarão para serem vertidas para o português, afora numerosos artigos, as monografias de Nimuendajú sobre os Palikúr, Xerente e Tukúna. Quanto aos manuscritos inéditos, existentes nos arquivos do Museu Nacional, em que pesem as dificuldades antes aludidas com respeito à sua ordenação e à revisão, certamente que precisam igualmente chegar à divulgação, em benefício dos estudos sobre os índios do Brasil.
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