Biblioteca Digital Curt Nimuendajú

Arquivo enviado pela autora em fevereiro de 2024

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O presente trabalho analisa a concepção suruwaha do auto-envenenamento (denominado por nós “suicídio”) enquanto prática ritual alternativa (análoga e em alguns poucos aspectos inversa) ao xamanismo, levada a cabo por pessoas acometidas pela raiva e que querem livrar-se das suas emoções negativas. Segundo os Suruwaha, o sumo tóxico do timbó e o tabaco (este último a planta xamânica por excelência) funcionam como espécie de “alimentos metafóricos”: substâncias que com suas qualidades olfativas e gustativas podem influenciar positivamente o “paladar do coração” (= neutralizar sentimentos negativos), mas que como efeito colateral desejado ou não produzem/ reforçam uma alienação mais ou menos extrema, reversível ou irreversível do corpo e do olhar (a troca do ponto de vista “nítido” dos seres humanos pelo ponto de vista “embaçado-incompreensível” das almas/dos espíritos-interlocutores dos xamãs).

A reflexão dos Suruwaha sobre a morte por envenenamento e a subsequente transformação dos suicidas em “animais de caça/ objetos/ afilhados do espírito-dono do timbó” nos traz presente um dos temas-chaves da sua cosmologia: o problema de que o mundo é, na sua essência, um cenário de luta entre seres que querem comer(=incorporar)-se ou possuir-se mutuamente para poder constituir-se enquanto sujeitos. Na morte se consuma um ato de predação (relação entre um caçador auto-concebido como humano e sua presa, definida por ele como animal mesmo que enxergue a si mesma como pessoa) que representa, de certa forma, o paradigma de toda relação entre seres vivos que pertencem a espécies (naturais ou sobrenaturais) diferentes.

Sobre o pano de fundo de uma históriografia oral em que os Suruwaha se descrevem sempre como Vítimas dos Outros (seja de canibais estrangeiros ou de xamãs conterrâneos) e de uma filosofia social que define a sociedade como conquista difícil e sempre pouco duradoura de relações simétricas entre pessoas que (enquanto não sofrem de uma alienação do olhar) se reconhecem mutuamente como humanas, a ingestão de veneno se delineia como ato público em que uma pessoa rejeita ser tratada como objeto das agressões e da desconsideração dos outros (isto é, como “não-pessoa”), e priva estes outros de si mesmo – com um sucesso duvidoso: Conforme a escatologia suruwaha, os suicidas ao pôr fim à sua vida na terra não escapam da sua condição indesejada de vítimas-objetos manipulados por outrem, mas apenas trocam a sua posição ambígua de humanos vivos (seres que em certos momentos são caçadores-sujeitos e em outros momentos presas-objetos) pela posição definitiva, mas incompreensível das almas – seres com pelo menos dois corpos um dos quais é sempre caçador/felino (=”sujeito”) e outro, sempre presa/peixe
(=”objeto”).

Arquivo enviado pela autora em fevereiro de 2024

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