Fulni-ô às pressas (Schröder 2019)

por Peter Schröder

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O principal mérito deste pequeno trabalho é que ele foi publicado na década de 1970, da qual temos poucos textos científicos sobre os Fulni-ô e nenhum etnográfico. Ou seja, existe um hiato entre as etnografias de Pinto (1956)1 e de Hernández Díaz (1983).2 Na realidade, não se trata, no caso do trabalho de Gonzaga de Mello, de nenhuma etnografia, o que o título poderia sugerir, mas apenas de diversos apontamentos daquilo que se sabia sobre os Fulni-ô no meio acadêmico da época.

Luiz Gonzaga de Mello, na época professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e, a partir da década de 1980, docente na UFPE, escreveu uma das primeiras introduções brasileiras à antropologia.3

O artigo é resultado de uma excursão do autor de apenas um (!) dia com alunos da UNICAP para realizar um pequeno exercício de campo. Hoje em dia, o produto de uma excursão desse tipo provavelmente seria algum relatório técnico arquivado numa pró-reitoria. De fato, o autor teve objetivos bastante modestos com a publicação do texto. E a breve visita (com hospedagem pela prefeitura de Águas Belas) nem permitiria esperar muito. Desse modo, todas as “notas etnográficas” do trabalho se baseiam em publicações anteriores, sobretudo na monografia de Estevão Pinto. Esta é considerada, hoje em dia, bastante problemática, já que não é possível confiar muito na validade das informações fornecidas por Pinto, as quais frequentemente são contestadas por muitos Fulni-ô. Não se conhece as origens e a confiabilidade de uma série de afirmações de Pinto, sobretudo aquelas sobre a organização social e a religião indígena. Uma crítica adequada a essa fonte, no entanto, não faz parte das “notas” de Gonzaga de Mello, provavelmente porque Estevão Pinto ainda era um tipo de “autoridade” no cenário local. Desse modo, temos nas “notas etnográficas” uma reprodução fiel, não questionada, das informações fornecidas por outros autores. As raras vozes indígenas citadas no trabalho quase não são tomadas a sério em comparação com as “autoridades” acadêmicas.


Sabe-se pela tradição oral indígena que as décadas de 1970 e 1980 eram caracterizadas para os Fulni-ô pela extrema pobreza e pela fome. Será que foi isso que, quando exposto por publicações acadêmicas, poderia ter sido interpretado pelo órgão indigenista como “fatos distorcidos”?


Quanto às informações etnográficas, então, é mais adequado consultar diretamente Estevão Pinto. Assim, resta olhar para outros aspectos que dizem respeito à vida dos Fulni-ô e que teriam sido observados “em campo”. Gonzaga de Mello menciona a situação da cidade de Águas Belas, localizada no meio da terra indígena, sofrendo da “carência de espaço para a sua expansão” (p. 73), porém sem entrar em detalhes. Em retrospectiva, ele constatou o óbvio.

As observações sobre a política indigenista e, sobretudo, sobre o órgão indigenista são bastante cautelosas. A burocratização excessiva no trabalho da Funai é o aspecto mais criticado. Aplicando os critérios de “integração” propostos por Darcy Ribeiro (p. 88), o autor chega a se questionar em que sentido os Fulni-ô podem ser considerados “integrados” em termos oficiais da política indigenista, no entanto sem abordar o tema (evidente) da resistência cultural forte daquele povo indígena, algo que também intrigou outros observadores (como Nimuendajú, por exemplo).

Em termos gerais, a política indigenista sob a ditadura militar até recebe elogios por causa dos grandes desafios de sua tarefa de “integrar” as culturas indígenas na “cultura nacional” (seja o que for isso). Um incômodo ficou perceptível: a proibição de tirar fotos dos Fulni-ô sem autorização especial da Funai, o que hoje em dia é algo que costuma ser negociado individualmente entre os visitantes da Aldeia urbana e seus moradores indígenas. A justificativa dos representantes da Funai teria sido “evitar a distorção dos fatos” (p. 84). Mas quais os fatos que poderiam ter sido “distorcidos”?

Ignorando a questão se pesquisadores como Gonzaga de Mello de fato tinham intenções de realizar pesquisas etnográficas por uma maior aproximação aos indígenas, ou se preferiram uma distância social mais confortável, o que poderia ter sido “distorcido”?

Sabe-se pela tradição oral indígena que as décadas de 1970 e 1980 eram caracterizadas para os Fulni-ô pela extrema pobreza e pela fome. Será que foi isso que, quando exposto por publicações acadêmicas, poderia ter sido interpretado pelo órgão indigenista como “fatos distorcidos”?


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