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Eduardo R. Ribeiro
(junho de 2019)
Introdução
Como é do conhecimento de todos, com o trágico incêndio no Museu Nacional perdeu-se uma das mais importantes coleções de material bibliográfico sobre as línguas indígenas do Brasil: o acervo do Centro de Documentação de Línguas Indígenas (CELIN), que incluía, entre outras preciosidades, o espólio de Curt Nimuendajú, adquirido de sua viúva em 1950. Passado o choque inicial, quando finalmente se começava a ter uma dimensão mais precisa da destruição do acervo, ficou claro que, apesar de tudo, a perda poderia ter sido ainda maior, não fossem iniciativas como (1) a digitalização, em alta qualidade, do original da versão final do Mapa etno-histórico do Brazil e regiões adjacentes (Nimuendajú 1944), levada a cabo por Jorge Domingues Lopes (UFPA) & Marcus Vinícius Carvalho Garcia (IPHAN); (2) a digitalização, por iniciativas de Tânia Clemente e Marília Facó Soares, de centenas de fotos; (3) e o trabalho incansável e providencial de Elena Welper, que "estima ter digitalizado 30% do total de manuscritos que compunham o acervo etnográfico" de Nimuendajú.
Mas, afinal, qual é a dimensão qualitativa do que perdemos? Para se ter uma idéia mais precisa da abrangência e profundidade do material destruído, eu proponho nesta nota uma abordagem multifacetada: analisando-se os levantamentos catalográficos disponíveis à luz da vasta produção de Nimuendajú, particularmente sua correspondência; incentivando pesquisadores da área a compartilharem seus conhecimentos de tal material (e cópias que porventura tenham feito), especialmente entre aqueles que adquiriram, através de pesquisas in situ no CELIN/MN, familiaridade com o acervo; explorando-se o material bibliográfico resultante de tais pesquisas; e estabelecendo diálogos com acervos de outras instuições, a fim de se determinar o que havia de propriamente único (ou não) no material perdido. Embora a ênfase na presente nota seja o acervo de Curt Nimuendajú, a modesta "metodologia" aqui sugerida se aplica a todo o material que constituía o acervo.
Catálogos
Uma consulta ao Guia de fontes e bibliografia sobre línguas indígenas e produção associada: documentos do CELIN, organizado por Marília Facó Soares (2013), revela que, embora toda e qualquer perda seja lamentável, nem toda perda é irremediável. A grande maioria do material bibliográfico perdido constitui-se de livros, periódicos e artigos publicados, além de cópias de teses e dissertações. Embora muitos destes itens sejam, naturalmente, raros, estão disponíveis em outras instituições; muitos, inclusive, já foram digitalizados. Assim, por mais que seja lamentável a perda de uma obra rara como, por exemplo, os dois volumes dos Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerikas zumal Brasiliens de Martius (1867), não se trata de uma lacuna irremediável.
Outro tipo de material mais facilmente recuperável são relatórios de pesquisa cujas cópias teriam sido arquivadas também fora do Museu Nacional. Um exemplo: por razão de convênio estabelecido quando da instalação do Summer Institute of Linguistics no Brasil, o Museu Nacional funcionava como repositório dos relatórios de pesquisas e publicações daquela instituição norte-americana de linguistas missionários. Logo após o incêndio, o linguista Alan Vogel, do SIL, se ofereceu a fornecer cópias do material a quem se interessar. Como sempre, a Biblioteca Digital Curt Nimuendajú está à disposição da comunidade científica para facilitar o acesso a tal material.
Insubstituíveis, por outro lado, são manuscritos como aqueles do Fundo Nimuendajú, que corresponde grosso modo a 1/5 do material arrolado no Guia. Mas mesmo os itens nesta última categoria apresentam diferentes graus de importância em termos do que sua destruição representa como perda de conhecimento. Para manuscritos que vieram a ser publicados, o que se perde, para o pesquisador, é a possibilidade de se cotejar a versão publicada com seus respectivos manuscritos, em busca de possíveis deslizes de transcrição ou de insights sobre a evolução na elaboração do texto; a existência de diferentes versões, inclusive rascunhos de trabalhos já publicados, ajuda a documentar a evolução do pensamento do autor. Estaria neste caso — de trabalhos já publicados, mas cujos originais se perderam1 — a grande maioria da produção etnológica de Curt Nimuendajú, a julgar pelo que diz Eduardo Viveiros de Castro:
"Praticamente toda a produção etnológica de Nimuendaju já foi publicada, embora muito dela o tenha sido em edições hoje esgotadas, de acesso difícil, ou em alemão. Nos últimos anos, entretanto, algumas traduções, reedições e coletâneas vêm contribuindo para maior divulgação desta obra (ver a bibliografia abaixo). A maior parte dos inéditos de Nimuendaju consiste em materiais lingüísticos (vocabulários), apontamentos, rascunhos, fotos, e uma importante correspondência; salvo engano, apenas um ensaio descritivo sobre os Kayapó de Pau d'Arco (Irãamrayre) e, sobretudo, uma versão em português de sua monografia sobre os Timbira, que difere bastante da versão inglesa editada por Lowie (The Eastern Timbira) em 1946, são os trabalhos etnográficos importantes ainda inéditos. De toda forma, as monografias sobre os Xerente, os Timbira Orientais e os Tikuna ainda estão à espera de uma edição em português; mas seus trabalhos lingüísticos e sua correspondência também merecem uma edição crítica." (Castro 1986:66; grifos nossos)
É natural, portanto, que nosso interesse se volte a esse material linguístico inédito. Embora o caráter sucinto do Guia do CELIN não nos permita ter uma idéia precisa do valor documental de cada item, contamos também com o levantamento feito pela linguista Yonne Leite, Notícia dos trabalhos lingüísticos inéditos de Curt Nimuendaju (1960), que fornece maiores detalhes sobre seu conteúdo. Com Yonne Leite aprendemos que o material linguístico de Curt Nimuendajú é um tanto desigual, incluindo, ao lado de dados originais e inéditos, rascunhos de obras já publicadas e listas comparativas baseadas em dados extraídos de outras fontes. Para o linguista histórico-comparativo, este tipo de material comparativo é essencial para que se tenha uma idéia do teor das evidências usadas por Nimuendajú para a classificação das famílias lingüísticas em seu Mapa etno-histórico. Leite menciona também a existência de diversos mapas — "Mapa de localização de índios na zona do Xingu, Araguaia, Tocantins e São Francisco" (10), "Mapa das tribos do rio Doce", "Mapa da distribuição das línguas Tupí, colorido a lápis amarelo" (13) etc. —, que podem ser vistos como ensaios na elaboração do monumental mapa. Leite menciona que "algumas listas são cópias em carbono" (1, 2), o que sugere a possibilidade de que existam cópias adicionais em outras instituições.
Como lembra Câmara Jr. (1959), as contribuições linguísticas de maior fôlego produzidas por Nimuendajú dizem respeito à língua dos Xipaya, publicadas originalmente em alemão e recentemente traduzidas e publicadas no Brasil por Peter Schröder (UFPE). Mas o artigo de Leite sugere a existência de outros materiais também extensos, inéditos: apontamentos para uma gramática da língua Kaingáng (1, 19); "um caderno de papel almaço in octavo, à tinta, texto alemão, de Contribuições para o conhecimento da língua Tembé (1916), e um caderno de papel almaço in quarto, texto português, de Material para uma gramática da língua Tembé comparada com a Guaraní do Padre Montoya (1915-1916)" (12); "um minucioso estudo" "sôbre o parentesco do grupo lingüístico Yurúna, de vinte e três páginas" (1); etc. No caso destas línguas, que sobreviveram e vêm sendo documentadas usando métodos de coleta e análise modernos, o trabalho de Nimuendajú teria valor eminentemente histórico (e até histórico-comparativo). Mais cruciais, em termos de documentação lingüística, seriam os dados de línguas extintas, como o "Arvân"(Aruã, família Arawák), a língua dos habitantes originais da Ilha do Marajó, de que Nimuendajú coletou um vocabulário (20). Exemplos adicionais são as línguas Kamakã (família Kamakã, tronco Macro-Jê) e Xukurú (isolada) [vide parágrafo seguinte].
Correspondência
Para o conhecimento de detalhes do material destruído, ajuda-nos também a própria prolificidade de Curt Nimuendajú, cuja obra teria sido, na opinião de Darcy Ribeiro (1977:93), "mais importante do que a obra de todos os etnólogos brasileiros juntos". Sua fértil correspondência com pesquisadores brasileiros e internacionais, através da qual ele compartilhava hipóteses, descobertas, dados linguísticos, fotos e esboços de mapas, fornece inúmeras pistas sobre a natureza do material que ele deixou inédito. Por exemplo, como relata Mário Melo, Nimuendajú conseguiu reunir 150 vocábulos do Xukurú (1, 12), língua extinta do Nordeste que já não contava com falantes fluentes na ocasião. Destes vocábulos, aparentemente, apenas 15 foram publicados, em uma tabela comparativa fornecida por Nimuendajú a Melo (1935). Em correspondência com Mansur Guérios (1948), Nimuendajú discute seu trabalho de campo com D. Jacinta Grayürá, última falante fluente da língua Kamakã, e compartilha alguns de seus dados. Mas a Notícia de Yonne Leite sugere um material mais abundante (5), registrado em "dois cadernos de papel almaço in quarto, a lápis," com "coletas vocabulares, observações lingüísticas e etnológicas, lendas e narrativas". Considerando-se a escassez de documentação sobre esta língua, o material de Nimuendajú seria verdadeiramente inestimável.
Coleções
Outro "efeito colateral" da enorme produtividade de Curt Nimuendajú é que sua obra está espalhada não apenas em diversas instituições brasileiras, como também norte-americanas e européias — o que, de certa maneira, ajuda a salvaguardar seu legado. Encontra-se material de Nimuendajú no MAE/USP (onde está arquivada a correspondência com Carlos Estevão de Oliveira, publicada por Thekla Hartmann em Cartas do Sertão, 2000), no Museu Goeldi (onde se encontra, por exemplo, a versão de 1943 do Mapa Etno-Histórico), na Biblioteca Nacional (onde se encontra o Arquivo Nunes Pereira, que inclui correspondência com e sobre Curt Nimuendajú) e no Museu do Estado de Pernambuco (através de sua Coleção Carlos Estevão de Oliveira). Em busca constante de apoio financeiro para suas pesquisas, Curt Nimuendajú entabulou colaborações com instituições como o Museu Etnológico de Berlim, da Alemanha, e o Museu de Gotemburgo, da Suécia, cujos acervos estão disponíveis online (incluindo vários itens de Nimuendajú). Este material disperso não apenas ajuda a contextualizar o acervo do Museu Nacional, mas, possivelmente, a preencher lacunas deixadas por sua destruição.
Pesquisadores
Além do material digitalizado, mencionado na Introdução, o legado do CELIN sobrevive no trabalho dos pesquisadores que dele se valeram ao longo de suas décadas de existência: nas experiências de convívio e intercâmbio acadêmicos e em artigos, monografias e teses baseados em consultas ao acervo. Além de ajudar a reconstituir virtualmente o acervo (indicando, mais pormenorizadamente, a natureza do material pesquisado), as narrativas destes pesquisadores ajudariam a aferir o impacto que o CELIN teve em suas carreiras e, por conseguinte, na construção do nosso campo de investigação científica. Muitos pesquisadores incluem em suas publicações fac-símiles do material pesquisado (vide, por exemplo, Algumas considerações sobre o problema do indio no Brazil, importante texto de Nimuendajú (1933) incluído em Pane Baruja (2014)). Reunir tais fac-símiles (e outros que porventura permaneçam em arquivos pessoais) seria um passo importante no processo de reconstituição do acervo.
Considerações finais
As notas acima são, essencialmente, um convite à cooperação a todos aqueles que disponham de informações a compartilhar. Interessados em contribuir com este intercâmbio podem fazê-lo de três maneiras: (1) enviando seu depoimento acerca de sua experiência com o acervo (ilustrada, caso relevante, com material bibliográfico resultante de suas pesquisas); (2) enviando comentários e esclarecimentos sobre o material linguístico discutido por Leite (1960), utilizando-se da versão "verbetizada" do artigo; (3) compartilhando cópias de material obtido originalmente no CELIN.
As iniciativas propostas aqui não têm caráter oficial, nem têm como intenção competir com iniciativas de resgate que venham a ser conduzidas em um nível institucional. Trata-se, simplesmente, de uma chamada aberta à cooperação com o intento de preencher lacunas deixadas pela destruição de um acervo valioso — um patrimônio científico do Brasil e, particularmente, de seus povos indígenas — e de reconstituir, senão o acervo, pelo menos sua história. A tarefa requer um esforço coletivo que lance mão de uma vasta rede de pesquisadores, dispersa em diferentes instituições e países. Neste contexto, a Biblioteca Digital Curt Nimuendajú se oferece a continuar cumprindo com seu papel habitual de catalisador e agregador de esforços para a construção colaborativa de um repositório estável de recursos de nossa área.
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(Página criada em 11 Jun 2019 03:19. Última modificação em 21 Oct 2019 14:27)