Certo dia, em 1973, fui procurada por uma moça que se dizia interessada na questão indígena. Todos nós que trabalhamos com antropologia sabemos o quanto se fantasia a figura do índio, na visão da perda que lamentamos: a imagem da liberdade, a relação forte com a natureza, o saber útil e belo. Pode-se imaginar e idealizar muito mais: eleger o mundo indígena como negação da vida metropolitana, sonhar com a aventura de viver na selva, distante da desigualdade, da opressão. Mas junto desses devaneios está a carga preconceituosa milenar, a suspeição de que só vale sonhar, pois a roda da história não inverte seu giro. A humanidade caminha para a frente. O índio viveria hoje o que vivemos no passado. O ideal romântico cede lugar à visão conservadora, empobrecida, que enxerga a diferença como indicadora de distância, distância no tempo. Eles são o que já fomos e um dia serão como nós. Eles se atrasaram. É importante ver como a atitude hostil, desdenhosa, que viceja nas áreas próximas aos territórios indígenas, pode também florescer nas grandes cidades, embora sob outra veste. Lá, índio é bugre, aqui é bom selvagem. Mas nos dois casos não é um de nós, um civilizado.
Pois bem, foi pensando nisso que resolvi receber a moça que me procurara. Eu saberia cortar-lhe os sonhos. Bastaria uma ou outra foto de índio esfarrapado, sem dentes, para que o encanto se quebrasse. Ela não era a primeira e não seria a última. A cada Semana do Índio podia se esperar novos surtos de nostalgia.
Mas a jovem que vi diante de mim mais me pareceu uma guerreira. Mestre em Economia, por Cornell, estava decidida a pensar sobre a questão indígena, conhecer o que falavam os antropólogos e combater a política odiosa que esmaga culturas milenares.
Com rara, agradável e surpreendente rapidez, percorreu teorias e métodos, debruçou-se com igual interesse nos clássicos, na etnografia — mesmo a mais árida, nos relatos da viagem, nas novas hipóteses. Hoje aceitei com enorme satisfação o convite para dizer algumas palavras sobre o livro dessa moça, que numa dezena de anos se tornou antropóloga de primeira grandeza, etnóloga linha de frente.
Betty Mindlin nos leva à aldeia Suruí e pouco a pouco nos revela o significado da vida comunitária. A cada página compreendemos que somos diferentes dos Suruí porque fizemos investimentos diversos. Demos pouca atenção às relações entre as pessoas, banalizamos muitas delas. Mas por outro lado dedicamos enorme esforço para o crescimento da ciência, da tecnologia. Os Suruí construíram a existência cercando de atenção outros aspectos da vida social. Desenvolveram com riqueza a comunicação com seus ancestrais, com as manifestações artísticas, com o mundo sobrenatural. Fizeram das tarefas árduas um exercício lúdico, preservaram com vigor sua liberdade e igualdade.
Durante a pesquisa, Betty viveu com eles a aproximação acelerada da "onda de desenvolvimento" que engolia Rondônia, o assustador fluxo migratório, invasões, ameaças físicas, o assédio das empresas, do Estado. O mundo tribal experimentou mudanças e continua a incorporá-las. Com rapidez, os Suruí passaram a investigar a sociedade nacional, procurando conhecer seu funcionamento. Da troca de presentes, logo se iniciaram na prática mercantil, no segredo da mercadoria. Quem os viu, no ano passado, visitando o Congresso Nacional, falando um português fluente, reivindicando seus direitos, jamais poderia supor que há pouco mais de uma década achavam-se submersos no mundo tribal. Mas com determinação decidiram decifrar o nosso mundo.
Betty Mindlin transporta o leitor do universo indígena ao mundo capitalista, mostrando as dificuldades que QS Suruí enfrentaram e os arranjos que tiveram de inventar. Mostra os perigos, resistências, registra enfim um período importante da história dos Paiter. A leitura é obrigatória para os que se interessem pela questão indígena e, igualmente, para os que querem conheceras intrincadas manifestações da humanidade e as construções simbólicas que dão cor à vida.
Carmen Junqueira
abril/1985
[das orelhas]